quarta-feira, 16 de maio de 2007

Memórias de uma foca

Capítulo I

Tudo começou em 1995. Começar com tudo começou é horrível, mas como é uma foca que escreve, perdoa-me, caro leitor. Caro leitor tampouco é expressão jornalística – é coisa de Machado de Assis. E tem outro inconveniente: a dupla pretensão. A primeira é achar que terei leitor; a segunda, usar coisa de Machado de Assis.

Mas continuemos. Para uma principiante, eu já estava bem velhinha. Como nasci em 64, contava na época com 30 anos. Não te apresses em fazer contas, leitor. Sou de dezembro. Os fatos da narrativa se iniciam em abril, portanto, faltavam oito meses para 31. Vá lá: 30 anos e quatro meses, se queres exatidão. De todo jeito, balzaca.

Pois bem. Nesse malfadado ano, meu amigo Oscar – jornalista, formado, com diploma e carteirinha – chamou-me para trabalhar num semanário de que era editor. Ainda não expliquei que sou formada em Letras, pelas gloriosas Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (hoje Universidade Católica Dom Bosco), e até então só havia cursado um semestre de Comunicação Social na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mesmo assim, Oscar insistiu em me levar para seu jornal.

Devo abrir parênteses aqui para confessar que esse meu amigo era encantado com minha capacidade intelectual. Sim, é verdade. Não penses que o encanto era devido a outros dotes, talvez mais palpáveis, que eu possa ter. Oscar não é disso. E também meus atributos físicos não são lá essas coisas. O verdadeiro fascínio que Oscar tinha por meu potencial – repito, intelectual – derivava basicamente de dois fatores.

O primeiro era a total falta de intimidade que ele mantinha com a língua portuguesa. Tão inculto quanto, mas não tão belo, meu amigo era alérgico à gramática da última flor do Lácio. Os longos e difíceis anos de convivência não foram suficientes para o convencer de que a crase é um fenômeno, não um acento gráfico, que não ocorre diante de palavras masculinas e verbos, já que não vêm precedidos por artigo definido feminino. Tocar no assunto empipocava-lhe o corpo. Meus conhecimentos morfológicos, sintáticos e ortográficos, então, assumiam, diante de seus olhos, grandiosidade que não têm.

O outro motivo, menos honroso, que fazia com que meus textos de comportada correção e nenhuma ousadia formal lhe parecessem pérolas era minha arrogância quase sem precedentes na história da humanidade. Eu adorava lhe explicar questões de gramática de uma maneira pedante o suficiente para ninguém entender, quanto mais ele, que já não se dava bem com o assunto.

Por conta disso, considerando que eu era um expoente da arte de escrever, Oscar levou-me para o tal hebdomadário – além de incompreensíveis explicações gramaticais, eu também era dada a palavras inusuais do vernáculo. Foi assim que iniciei minha vida de foca, cujos episódios passo a lhe narrar, caro(a) leitor(a). Agora com a inclusão politicamente correta do gênero feminino no vocativo. Os tempos pedem.

(Único capítulo encontrado do livro "Memórias de uma Foca")

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