As ruas estavam quase desertas. Àquela hora da madrugada, em dias de semana, a cidade ficava mesmo vazia. Os dois amigos andavam devagar, parando às vezes para olhar se alguém os acompanhava.
Ela, mais nervosa, apertava o passo de vez em quando, mas logo voltava ao ritmo anterior. O rapaz não aparentava nenhuma agitação. Dava passos largos e vagarosos. Às vezes inspirava o ar e o soltava de forma ostensiva, ruidosa. A amiga costumava dizer que ele “soprava o mundo”, num suspiro ao contrário.
Haviam combinado aquilo havia semanas. Passaram vários dias discutindo e planejando. A idéia partira dele, mas ela havia insistido na realização. Sondaram as ruas centrais da cidade e finalmente marcaram a data.
Chegaram à livraria combinada. Disfarçadamente olharam ao redor. Certificaram-se da ausência de outras pessoas na rua e entraram no corredor lateral da loja. Era um corredor comprido e escuro. No final, uma porta de madeira dava acesso à sala central.
Com um canivete e um cartão de plástico, ele tentava forçar a fechadura, enquanto ela observava a rua. Alguns minutos depois, ele conseguiu abrir a porta e rapidamente os dois entraram na livraria. Ficaram parados, ofegantes, alguns segundos, até que a respiração voltou ao normal. A luz da sala estava desligada, mas a iluminação que vinha da rua era suficiente para não tropeçarem. Aos poucos, seus olhos acostumaram-se à semi-escuridão e eles já se deslocavam com facilidade.
Ao lado da entrada, junto a uma das estantes, ela se deteve. Ele caminhou mais um pouco, indo até a estante do fundo da sala. Parou, embevecido, e passou a mão por alguns livros da prateleira mais alta. Seus dedos corriam delicadamente pelos volumes, como temendo feri-los. Parou, finalmente, num deles e somente com o indicador e o polegar retirou, com vagar e prazer, Schopenhauer da estante.
Enquanto ele alisava a capa do exemplar, ela já havia retirado cinco livros do lugar. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Machado de Assis jaziam sobre uma mesa ao lado da estante. Estava cada vez mais nervosa. Sabia que não poderia levá-los todos, mas não conseguia decidir. De súbito, largou a seção de literatura brasileira e se dirigiu à estante vizinha. Correu os olhos durante alguns segundos e, na ponta dos pés, alcançou José Saramago na penúltima prateleira. Sorriu para a Jangada de Pedra.
Ficaram mais algum tempo passeando pela loja. Resolveram sair cada um com dois livros. Ele, carregando Schopenhauer e o Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues. Ela levava José Saramago e o Amor Natural, do Drummond. Odiava Nelson Rodrigues.
De novo na rua, caminharam em direção à avenida central da cidade. Chegaram à praça sem problemas. Sentaram-se num banco de cimento e começaram a rir da empreitada. Ele se gabava de ter previsto a falta de segurança da livraria. “Quem iria querer roubar livros?” – costumava dizer. Ela lamentava não poder trazer mais volumes. Levantaram-se e caminharam pela avenida até os trilhos do trem. Ali se despediram e cada qual foi para sua casa.
Depois do sucesso da investida, outras se seguiram. Adquiriram habilidade para abrir portas e assaltaram mais três livrarias. Na quarta, saíram carregando cinco livros cada um. Já não se preocupavam com polícia ou coisa parecida, tal a facilidade dos furtos. Entraram até num sebo, onde ela conseguiu um exemplar antiqüíssimo de Os Sermões, de Vieira, e ele, uma das poucas traduções de Heidegger para o português.
Certo dia, porém, um dos jornais da cidade publicou uma nota sobre o estranho caso das livrarias. Como os dois não liam jornais locais, não tomaram conhecimento do fato. A matéria dizia que a polícia começaria a vigiar as lojas de livros.
Desavisados, fizeram mais um furto e despreocupadamente foram beber cerveja numa lanchonete próxima à praça central. A polícia os encontrou folheando Pascal e Zola. Foram pegos em flagrante.
Na delegacia, um policial encaminhou os dois para interrogatório. O delegado parecia se divertir com a situação. Dirigia-se aos dois com sorrisos irônicos. A moça exigiu advogado e cela especial. Tinha curso superior.
— E a mocinha é formada em quê? — perguntou o delegado.
— Letras.
— Que bonitinho! O garotão, aí, também é formado?
— Não, eu ainda estudo. Filosofia.
— Olha, só, galera! — dirigindo-se aos policiais — o boneco faz Filosofia. Que gracinha!
As risadas soaram por toda a sala do delegado.
— Rapazinho delicado!
— Não tem curso de macho na faculdade?
— Vai fazer “adevogacia”, rapaz!
O delegado, ainda rindo, ordenou que o levassem dali:
— Leva o florzinha pra cela do fundo, junto com os dois grandões, que eu vou ver a situação da donzela aqui.
Depois, ordenou revista na casa dos dois. Em suas estantes, a prova dos outros furtos. Todos os livros foram apreendidos, até os que não haviam sido roubados.
Foi um escândalo. O rapaz era de família tradicional, descendente dos fundadores da cidade. Seu pai, jornalista e historiador famoso, fazia parte dos altos escalões do governo estadual. A moça, mais velha e de família pobre, foi acusada de tramar os assaltos e desencaminhar o pobrezinho.
Durante várias semanas, eles foram assunto principal da imprensa. Criou-se polêmica nacional. Na televisão, faziam pesquisas de rua. “O senhor acha que eles devem ficar presos?”. Um sociólogo importante, num programa de entrevistas, questionava “uma sociedade culturalmente falida, que não propicia saber e conhecimento à juventude”.
O âncora mais famoso da televisão vociferou que “um país onde jovens precisam roubar livros é vergonhoso!”. Um deputado federal, dono de programa de rádio, disse que “roubo é roubo; são ladrões, são dois vagabundos, têm de ficar é na cadeia!”.
A TV estatal fez uma reportagem sobre juventude e delinqüência, e a rede de televisão de maior audiência no país criou uma programação especial para o caso. “Eles devem ser punidos?”. Os telespectadores ligavam para a emissora e votavam. Os jornais diários tinham espaço reservado e até selo para o assunto.
Cantores de MPB fizeram um grande concerto pela liberdade dos acusados, e a Liga das Senhoras pela Moralidade organizou uma passeata exigindo sua manutenção na cadeia.
Do exterior chegaram manifestações de apoio aos jovens. A representação norte-americana da Comissão de Direitos Humanos veio até o Brasil especialmente para analisar a situação. Grupos de teatro anarquistas manifestaram apoio. Partidos políticos discutiram acirradamente o assunto. O Green Peace e o Sting não se pronunciaram.
Finalmente, o inquérito chegou à fase judicial e os dois foram condenados. Por serem réus primários, puderam cumprir a pena em liberdade.
Hoje, os dois ainda moram na mesma cidade. Ainda saem juntos para tomar cerveja e têm os mesmos amigos. As famílias perdoaram o ocorrido. Estão mais tranqüilos agora, mas planejam novas investidas. Só estão esperando que ele termine o curso de Filosofia. Melhor garantir cela especial.
Ela, mais nervosa, apertava o passo de vez em quando, mas logo voltava ao ritmo anterior. O rapaz não aparentava nenhuma agitação. Dava passos largos e vagarosos. Às vezes inspirava o ar e o soltava de forma ostensiva, ruidosa. A amiga costumava dizer que ele “soprava o mundo”, num suspiro ao contrário.
Haviam combinado aquilo havia semanas. Passaram vários dias discutindo e planejando. A idéia partira dele, mas ela havia insistido na realização. Sondaram as ruas centrais da cidade e finalmente marcaram a data.
Chegaram à livraria combinada. Disfarçadamente olharam ao redor. Certificaram-se da ausência de outras pessoas na rua e entraram no corredor lateral da loja. Era um corredor comprido e escuro. No final, uma porta de madeira dava acesso à sala central.
Com um canivete e um cartão de plástico, ele tentava forçar a fechadura, enquanto ela observava a rua. Alguns minutos depois, ele conseguiu abrir a porta e rapidamente os dois entraram na livraria. Ficaram parados, ofegantes, alguns segundos, até que a respiração voltou ao normal. A luz da sala estava desligada, mas a iluminação que vinha da rua era suficiente para não tropeçarem. Aos poucos, seus olhos acostumaram-se à semi-escuridão e eles já se deslocavam com facilidade.
Ao lado da entrada, junto a uma das estantes, ela se deteve. Ele caminhou mais um pouco, indo até a estante do fundo da sala. Parou, embevecido, e passou a mão por alguns livros da prateleira mais alta. Seus dedos corriam delicadamente pelos volumes, como temendo feri-los. Parou, finalmente, num deles e somente com o indicador e o polegar retirou, com vagar e prazer, Schopenhauer da estante.
Enquanto ele alisava a capa do exemplar, ela já havia retirado cinco livros do lugar. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Machado de Assis jaziam sobre uma mesa ao lado da estante. Estava cada vez mais nervosa. Sabia que não poderia levá-los todos, mas não conseguia decidir. De súbito, largou a seção de literatura brasileira e se dirigiu à estante vizinha. Correu os olhos durante alguns segundos e, na ponta dos pés, alcançou José Saramago na penúltima prateleira. Sorriu para a Jangada de Pedra.
Ficaram mais algum tempo passeando pela loja. Resolveram sair cada um com dois livros. Ele, carregando Schopenhauer e o Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues. Ela levava José Saramago e o Amor Natural, do Drummond. Odiava Nelson Rodrigues.
De novo na rua, caminharam em direção à avenida central da cidade. Chegaram à praça sem problemas. Sentaram-se num banco de cimento e começaram a rir da empreitada. Ele se gabava de ter previsto a falta de segurança da livraria. “Quem iria querer roubar livros?” – costumava dizer. Ela lamentava não poder trazer mais volumes. Levantaram-se e caminharam pela avenida até os trilhos do trem. Ali se despediram e cada qual foi para sua casa.
Depois do sucesso da investida, outras se seguiram. Adquiriram habilidade para abrir portas e assaltaram mais três livrarias. Na quarta, saíram carregando cinco livros cada um. Já não se preocupavam com polícia ou coisa parecida, tal a facilidade dos furtos. Entraram até num sebo, onde ela conseguiu um exemplar antiqüíssimo de Os Sermões, de Vieira, e ele, uma das poucas traduções de Heidegger para o português.
Certo dia, porém, um dos jornais da cidade publicou uma nota sobre o estranho caso das livrarias. Como os dois não liam jornais locais, não tomaram conhecimento do fato. A matéria dizia que a polícia começaria a vigiar as lojas de livros.
Desavisados, fizeram mais um furto e despreocupadamente foram beber cerveja numa lanchonete próxima à praça central. A polícia os encontrou folheando Pascal e Zola. Foram pegos em flagrante.
Na delegacia, um policial encaminhou os dois para interrogatório. O delegado parecia se divertir com a situação. Dirigia-se aos dois com sorrisos irônicos. A moça exigiu advogado e cela especial. Tinha curso superior.
— E a mocinha é formada em quê? — perguntou o delegado.
— Letras.
— Que bonitinho! O garotão, aí, também é formado?
— Não, eu ainda estudo. Filosofia.
— Olha, só, galera! — dirigindo-se aos policiais — o boneco faz Filosofia. Que gracinha!
As risadas soaram por toda a sala do delegado.
— Rapazinho delicado!
— Não tem curso de macho na faculdade?
— Vai fazer “adevogacia”, rapaz!
O delegado, ainda rindo, ordenou que o levassem dali:
— Leva o florzinha pra cela do fundo, junto com os dois grandões, que eu vou ver a situação da donzela aqui.
Depois, ordenou revista na casa dos dois. Em suas estantes, a prova dos outros furtos. Todos os livros foram apreendidos, até os que não haviam sido roubados.
Foi um escândalo. O rapaz era de família tradicional, descendente dos fundadores da cidade. Seu pai, jornalista e historiador famoso, fazia parte dos altos escalões do governo estadual. A moça, mais velha e de família pobre, foi acusada de tramar os assaltos e desencaminhar o pobrezinho.
Durante várias semanas, eles foram assunto principal da imprensa. Criou-se polêmica nacional. Na televisão, faziam pesquisas de rua. “O senhor acha que eles devem ficar presos?”. Um sociólogo importante, num programa de entrevistas, questionava “uma sociedade culturalmente falida, que não propicia saber e conhecimento à juventude”.
O âncora mais famoso da televisão vociferou que “um país onde jovens precisam roubar livros é vergonhoso!”. Um deputado federal, dono de programa de rádio, disse que “roubo é roubo; são ladrões, são dois vagabundos, têm de ficar é na cadeia!”.
A TV estatal fez uma reportagem sobre juventude e delinqüência, e a rede de televisão de maior audiência no país criou uma programação especial para o caso. “Eles devem ser punidos?”. Os telespectadores ligavam para a emissora e votavam. Os jornais diários tinham espaço reservado e até selo para o assunto.
Cantores de MPB fizeram um grande concerto pela liberdade dos acusados, e a Liga das Senhoras pela Moralidade organizou uma passeata exigindo sua manutenção na cadeia.
Do exterior chegaram manifestações de apoio aos jovens. A representação norte-americana da Comissão de Direitos Humanos veio até o Brasil especialmente para analisar a situação. Grupos de teatro anarquistas manifestaram apoio. Partidos políticos discutiram acirradamente o assunto. O Green Peace e o Sting não se pronunciaram.
Finalmente, o inquérito chegou à fase judicial e os dois foram condenados. Por serem réus primários, puderam cumprir a pena em liberdade.
Hoje, os dois ainda moram na mesma cidade. Ainda saem juntos para tomar cerveja e têm os mesmos amigos. As famílias perdoaram o ocorrido. Estão mais tranqüilos agora, mas planejam novas investidas. Só estão esperando que ele termine o curso de Filosofia. Melhor garantir cela especial.
Um comentário:
Gostei bastante desse conto. Com o título se imagina uma história totalmente diferente! Parabéns!
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