quarta-feira, 16 de maio de 2007

Hoje

Hoje estou decidida, vou contar tudo sobre mim.Uso águas de colônia baratas e cervejas caras. Tenho um par de sapatos modernos, de prata azulada, que calço para ir ao mercado todos os dias e à Lua quando dá tempo.

Odeio fícus podados – coitados, tenho dó. Acho árvore mais bonito do que flor. As de Campo Grande são lindas, copadas, cheias, verdinhas. Algumas regiões da cidade, vistas do alto (mas não muito), assemelham-se à imagem que as crianças fazem das nuvens. Parecem chumaços de algodão verde. Tenho a impressão de que se pode sair pulando sobre as elas. Disso me veio a idéia de elaborar um livro infantil, já publicado, mas nunca escrito.

As melhores coisas de Campo Grande são suas árvores e minhas mãos. Tenho unhas ridículas: minúsculas e arrebitadas, que mantenho curtas e lixadas, mas sonho em ter enormes e vermelhas. Quando você me vir na rua, será impossível que eu não o reconheça.

Dez dicas para o bom escritor

01) - Quando você não tiver o que fazer, não escreva. Só sairão bobagens. Escritor não é aquele que quer escrever, mas o que disso precisa.

02) - Não use a primeira pessoa com freqüência, a não ser que você seja o Machado de Assis.

03) - Não cometa poemas. Já existe quem defenda a queima de maus poetas em praça pública, numa fogueira feita com seus escritos (há um projeto tramitando no Congresso Nacional).

04) - O coração não faz poesia. Coração, quando está bem, bate; quando está mal, mata. Nunca, porém, ouviu-se falar de um coração que escrevesse.

05) - Trate bem as palavras. Ou as trate mal. Mas trate-as. Não conseguirá escrever sem elas.

06) - Domine muito bem a língua que pretende usar. O idioma também.

07) - Leia bastante. Se isso não ajudá-lo a escrever, ajudará a fazar análise literária.

08) - Escreva todos os dias, o máximo que puder. Quantidade não é qualidade, mas pelo menos você terá o que jogar fora.

09) - Não mostre seus escritos aos amigos. Eles não serão imparciais. Também não os mostre aos desafetos. Você vai dar esse gostinho a eles?

10) - Não ouça conselhos de quem não sabe escrever. Nem de quem sabe. Quem escreve não sabe dar conselhos; quem os dá não sabe escrever.

Boa sorte!

Na repartição

E se eu não for trabalhar hoje? E se for, mas não fizer nada? E se fizer, mas mal-feito? Adianta? Quando chego bem cedo e percebo que o dia não vai ser bom, a semana não vai ser boa, a vida não vai ser boa, vou para um canto escuro de uma sala escura deste imenso prédio escuro e choro. Depois, seco os olhos, mas ficam resquícios. O que houve com seus olhos, dona? Estão vermelhos. Conjuntivite, doutor. Ei, isso pega! Pega, mas já está no fim. Amanhã, terei os olhos limpos e claros como água de rio. Talvez, a alma também, mas esta é mais difícil, porque não usa colírio.

E se eu resolvesse não viver hoje? Ficar acocorada em algum lugar, com a cabeça entre as pernas, bem quieta. Ei, dona, o que há? Nada, não responderia nada. Será que me deixariam? Ou chamariam um psiquiatra? Se eu ficasse calada, total silêncio, sem movimentos, sem levantar a cabeça; se eu me recusasse a responder. Eles se esqueceriam de mim, quem sabe? Então, eu saberia se a paz se encontra assim, de cócoras. Sou uma mulher grande. Não será fácil. Tenho medo de que resolvam levar-me. Para casa, para o hospital, para o hospício. Teriam de chamar dois homens, no mínimo. Sou pesada. Seria vexatório? Cômico? Deprimente? Acho que não tenho coragem de fazer isso. Deve ser o que nos diferencia dos loucos: a coragem.

Às vezes, passo horas tentando decifrar coisas sem a mínima importância prática. Certa função sintática de uma palavra em uma oração grande de um período ainda maior. Não sei para quê. Mas é divertido, ocupa a cabeça, pelo menos durante um certo tempo. Depois... bem, depois é outra história. Pode-se começar tudo de novo. Outra coisa interessante é ficar fuçando e descobrir a origem de um termo, suas transformações até a palavra atual. É bom. Ri-se bastante e se adia o acocoramento.

Não se deve ler muito, porém. Leitura faz mal à vista. Quando era pequena, gostava de ler à hora do almoço. Isso acaba com seus olhos, menina! Largue já esse livro, venha comer. Ah, mãe! Ei, menina, não leia com pouca luz, deixe esse livro aí. Ah, mãe! Sempre soube que leitura enfraquece os olhos, mas o que acabou me obrigando a usar óculos foi o computador. Talvez eu tenha lido pouco, mesmo. Escrever faz menos mal. Pelo menos, ninguém nunca me repreendeu por estar escrevendo. Talvez porque eu não escreva na frente dos outros. Tenho vergonha. Quero dizer, quando trabalhava no jornal, tinha de escrever na sala de redação, junto a todos os jornalistas. Mas nenhum se preocupa com o que o outro escreve e, além do mais, eram matérias para um periódico. Lê-se num dia e no outro já nem se lembra mais. Quando se escreve algo ruim, não há com o que se preocupar. Ninguém vai lembrar. Só quem escreveu.

De toda forma, trabalhar, ler, ouvir música e outras coisas são ótimas para evitar que se pense em ficar de cócoras para o resto da vida. Um bom exercício para não pensar. Principalmente o trabalho. Além de dignificante, é alienante, o que é muito bom, pois impede maus pensamentos. Há um ditado popular: "cabeça vazia, oficina do diabo". Por isso, sempre é bom ter muitas tarefas. Mas e se eu não as fizesse hoje?

Canetas

Tenho três canetas sobre minha mesa. E nenhuma idéia. Estranhamente, tenho três canetas sobre minha mesa. Normalmente, não há nenhuma. Tampouco há idéias. A diferença, agora, é que há três canetas sobre minha mesa. Por que estarão todas elas aqui hoje? Não consigo atinar a nada sobre como utilizá-las. Sei que estão. Sobre minha mesa. Não se mexem, não se oferecem. Estão. Devo tomar uma atitude. Entre usá-las ou tirá-las de minha vista, fico em dúvida. Não sei o que será de mim sem canetas sobre minha mesa. Tampouco sei o que será com três. Mas as tenho. Sobre minha mesa. Caso resolva o que fazer, terei de manuseá-las uma por vez. Pego uma e tenho duas canetas sobre minha mesa e uma entre meus dedos. Se trocá-las a situação continuará a mesma. Preciso entender o que mudaria com uma caneta entre meus dedos e duas sobre minha mesa. Se as tivesse, as três, nas minhas mãos, poderia fazer três riscos simultâneos sobre o papel. Também precisaria descobrir a utilidade disso. O melhor é ter uma caneta para manusear e duas sobre a mesa. Caso se acabasse a tinta da primeira, utilizaria uma das duas restantes. Para que a carga da primeira caneta se acabe, há duas hipóteses. Ou estaria ela já com muito pouca tinta ou seria necessário escrever muito. Neste caso, nenhuma das possibilidades existe. As três canetas sobre minha mesa são novas, e eu ainda não escrevi nada. A primeira caneta, portanto, permaneceria muito tempo entre meus dedos. Teria duas canetas sobre minha mesa. E não se pode saber o que fazer com elas.

Caipira

A água jorrando da torneira batia nas costas das mãos, brincando entre os dedos. Com um movimento brusco, ela conseguiu que as gotas caíssem com mais força, fazendo furinhos na espuma dentro do tanque. Parada, olhando os movimentos da água sobre a espuma, lembrou-se do mar. Como era bom o mar. Há quanto tempo ela não via aquela imensidão de água.

Da única vez que fora ao litoral, aos quinze anos, guardava boas lembranças. No início, a timidez. Vergonha de se despir, branquela e gordinha, diante daqueles corpos bronzeados. A tia insistindo para que entrasse logo na água.

Aos poucos, tomando coragem, esquecida do maiô fora de moda, foi colocando os pés na água, entrando de mansinho. Um misto de receio e alegria; as ondas batendo nas coxas. Por um instante imaginou que a massagem da água poderia lhe modelar as pernas e deixá-las como as das modelos de revistas.

Logo, coberta pela água até os ombros, não pensava em mais nada. O mar todo a envolvia e era como se ela toda o envolvesse. Uma união nunca sentida antes. Despertou do transe com os gritos da tia, pedindo para que não fosse muito longe. Voltou devagarinho, sentindo aos poucos cada parte do corpo que se expunha ao ar.

Já não via os corpos perfeitos, os biquínis modernos. Só aquela sensação de perda, aos pedaços, como se sua pele houvesse ficado lá, dentro do mar. Colocou a saída de paia e sorriu para a tia.

Para Mariana

Quando me virei para pegar o jornal, meti as unhas na parede. De bico. Pressenti a dor. Fechei os olhos e esperei que viesse. Ela veio. Intensa. Fiquei com os olhos fechados durante alguns minutos. Imaginei os dedos da mão enormes, vermelhos, com o sangue fluindo para as pontas e coagulando, tornando-as, aos poucos, pretas, até arrebentarem. O líquido podre caindo e se espalhando pelo chão do quarto. A dor começou a passar. Abri os olhos e mirei minhas mãos. Estavam normais, nem sequer vermelhas. Pálidas, as unhas pequenas e arrebitadas como sempre. Bobagem, pensei. Onde já se viu sangue coagulado se espalhar pelo chão?

Minha vida de cachorro em Campo Grande

Campo Grande já ficou conhecida no cenário nacional por ser uma das cidades com o maior número de carros por habitante ou o menor número de habitantes por carro – escolham. É claro que isso dá notícia, até porque o trânsito da cidade foi considerado um dos mais indisciplinados do país, que por sua vez tem o pior trânsito do mundo. Resultado: fomos parar no Jornal Nacional.

Aquilo de que ninguém ainda se deu conta, porém, é que Campo Grande talvez se notabilize por algo muito mais “animal”: a cidade deve ter o maior índice de cachorros per capita do planeta. É verdade. Campo Grande é um verdadeiro canil. Na Vila Alba, por exemplo, onde morei por mais de 15 anos, tinha a impressão de que a quadra onde se localizava minha casa, na Avenida Madrid, poderia entrar para o Guiness Book como o local de maior concentração de cachorros por metro quadrado do Universo — depois de cientificamente comprovada a existência de cachorros no resto do Universo, é claro. Não havia nenhuma casa com menos de três cachorros (com exceção da minha, onde só havia um, por insistência de minha mãe).

É quase humanamente impossível dormir numa situação dessas. As alternativas são: a) dormir à tardinha, antes dos cachorros começarem a latir; b) dormir de manhã, depois que os cachorros pararem de latir; c) gostar de dormir ao som de latidos e d) não dormir. Ah! Pode-se usar tampão de ouvido, também.

As tentativas de acalmar os cães são geralmente infrutíferas. Primeiro, porque eles não latem de nervoso. Latem de alegria, latem para se comunicar e latem quando entram desconhecidos. Tenho a impressão de que também latem para irritar humanos. Na ânsia de aquietá-los, tentei João Gilberto, certa vez. Não deu certo, porque, por mais que eu aumentasse o volume, o som dos latidos sempre suplantava a voz do meu cantor favorito. Desisti da idéia dos soníferos depois de fazer pesquisa de preço nas farmácias e ao ser advertida sobre a existência da Sociedade Protetora dos Animais em Campo Grande (sim, os soníferos seriam para eles, os cães, não para mim, que odeio usar drogas — para dormir).

Mudei-me para outro bairro, Santo Amaro, e a esperança de dormir em paz desvaneceu-se na primeira noite. Estou pensando em rever a indicação da Vila Alba para o Livro dos Recordes.

O grande número de cachorros não traz dificuldades somente aos que buscam um sono tranqüilo. Para os caminhantes noturnos, a cachorrada é um problema. No centro da cidade, tudo bem, mas nos bairros não dá para andar nas calçadas à noite. Os notívagos têm de andar na rua se não quiserem ir aos sobressaltos. Enormes cachorros pulam detrás de grades e muros aparentemente inofensivos e devem ser os responsáveis por muitos infartos não explicados na calada da noite. Com todos os riscos, andar no meio da pista de rolamento ainda é preferível — os carros, no mais das vezes, são identificáveis pelos faróis.

Por outro lado, a população canina de Campo Grande poderia ser uma atração turística. Raças, tamanhos e cores os mais variados. Certo dia, vi um cachorro do tamanho de um bezerro. Acho que era um fila. Lembrei-me imediatamente daqueles filmes de terror, com cães de olhos vermelhos e dentes pontiagudos. Daria uma superprodução.

Pensando bem, há que se fazer justiça aos pobres bichinhos. Seus defensores alegam que eles protegem as casas e são boas companhias para as crianças. De volta ao início, os motoristas indisciplinados, que acham que pedestre não é gente e nos levam a passar vergonha em cadeia nacional de televisão, ainda são as piores pragas da Cidade Morena.

Vestido cor-de-rosa

A funcionária desceu do ônibus e atravessou a rua. Rapidamente, subiu os três degraus que separavam a calçada do corredor da vila. Eram dez pequenos quartos, dispostos lado a lado. No fim do corredor, torneira e tanque coletivos. Além do pouco espaço, o barulho dos vizinhos era outro problema, mas aquela moradia era a mais barata que conseguira arrumar.

Desde adolescente morando sozinha na cidade, terminara o colegial já aos 22 anos. Prestara um concurso para um cartório e lá estava há dez anos. O serviço era enfadonho, mas estável. Não gostava de aventuras. O ambiente até que era bom. As colegas mostravam-se simpáticas. Todas casadas, falavam de marido e filhos durante quase todo o dia. Só ela se calava. Não se constrangia, entretanto.

Na verdade, o que mais a entristecia não era a falta de um marido ou de filhos, propriamente, mas a ausência de um grande amor. Era o que pensava, ao menos. Por isso, não invejava as companheiras. Elas tinham marido, mas não via nelas indícios de paixões devastadoras.

As fantasias românticas tomavam todo seu tempo livre. Quando não estava no trabalho, estava em seu quarto lendo algum livro. Geralmente lia romances açucarados, cujos autores ela julgava estadunidenses. Os amores e desventuras das heroínas fascinavam-na. Costumava imaginar-se no lugar delas. Demorava-se nas passagens que descreviam as roupas dos personagens, principalmente em festas. Fixava-se nos detalhes e reproduzia mentalmente os vestidos descritos. Pensava em si mesma vestida daquela maneira.

Naquela noite, após chegar do trabalho, pegou avidamente o romance que começara na véspera. Colocou um cinzeiro no braço da pequena poltrona que havia no quarto e começou a ler.

O iate luxuoso, as jóias reluzentes, a decoração suntuosa, tudo que o romance barato descrevia fazia parte de seu mundo então. Ao som de uma orquestra, os casais dançavam, inebriados. Num instante, via-se como a heroína da história, num vestido cor-de-rosa. Vestido e cabelo esvoaçavam ao vento. Deliciava-se a cada palavra do herói, que, sobre a proa do navio, tomava-lhe as pontas do vestido nas mãos. Tecido e pessoa eram um só ser, sentia-se diáfana.

Sem querer, esbarrou no cinzeiro, que caiu ao chão, espalhando cinzas sobre um par de calças compridas brancas meticulosamente dobrado sobre uma almofada. O incidente arrancou-a ao devaneio.

Fechou o livro, pegou as calças e as espanejou delicadamente com as costas da mão para que as cinzas caíssem sem manchá-las. Era a única roupa disponível para o dia seguinte. Prometeu a si mesma que compraria algumas peças de roupa com o próximo salário.

Depositou as calças agora sobre as costas da poltrona e novamente abriu o livro. Voltou à leitura, mas não ao sonho. A imagem das calças misturava-se à dos vestidos. Não conseguia sequer fixar-se no enredo. Pensou na repartição. Papéis e carimbos tomavam o lugar dos olhares e sussurros enamorados. Lembrou-se de um processo cujo andamento estava atrasado. Precisava concluí-lo o quanto antes.

Deitou-se já sem sonhos e dormiu logo. Raro ter insônia. No dia seguinte, acordou mais cedo que de costume. Preparou café e o tomou lentamente enquanto fumava um cigarro. Vestiu-se e saiu à rua. Logo subiu no ônibus e chegou ao local de trabalho.

Sobre a mesa, o processo atrasado. Tinha quatro volumes e estava empilhado a um canto. Sentou-se e começou a folheá-lo. Quando estendeu a mão para pegar um carimbo, derrubou um tubo de tinta azul sobre o colo. Dessa vez o estrago foi irreversível. As pernas das calças mancharam-se de azul. Malditas calças brancas. Jurou que da próxima vez compraria jeans.

Cela especial

As ruas estavam quase desertas. Àquela hora da madrugada, em dias de semana, a cidade ficava mesmo vazia. Os dois amigos andavam devagar, parando às vezes para olhar se alguém os acompanhava.

Ela, mais nervosa, apertava o passo de vez em quando, mas logo voltava ao ritmo anterior. O rapaz não aparentava nenhuma agitação. Dava passos largos e vagarosos. Às vezes inspirava o ar e o soltava de forma ostensiva, ruidosa. A amiga costumava dizer que ele “soprava o mundo”, num suspiro ao contrário.

Haviam combinado aquilo havia semanas. Passaram vários dias discutindo e planejando. A idéia partira dele, mas ela havia insistido na realização. Sondaram as ruas centrais da cidade e finalmente marcaram a data.

Chegaram à livraria combinada. Disfarçadamente olharam ao redor. Certificaram-se da ausência de outras pessoas na rua e entraram no corredor lateral da loja. Era um corredor comprido e escuro. No final, uma porta de madeira dava acesso à sala central.

Com um canivete e um cartão de plástico, ele tentava forçar a fechadura, enquanto ela observava a rua. Alguns minutos depois, ele conseguiu abrir a porta e rapidamente os dois entraram na livraria. Ficaram parados, ofegantes, alguns segundos, até que a respiração voltou ao normal. A luz da sala estava desligada, mas a iluminação que vinha da rua era suficiente para não tropeçarem. Aos poucos, seus olhos acostumaram-se à semi-escuridão e eles já se deslocavam com facilidade.

Ao lado da entrada, junto a uma das estantes, ela se deteve. Ele caminhou mais um pouco, indo até a estante do fundo da sala. Parou, embevecido, e passou a mão por alguns livros da prateleira mais alta. Seus dedos corriam delicadamente pelos volumes, como temendo feri-los. Parou, finalmente, num deles e somente com o indicador e o polegar retirou, com vagar e prazer, Schopenhauer da estante.

Enquanto ele alisava a capa do exemplar, ela já havia retirado cinco livros do lugar. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Machado de Assis jaziam sobre uma mesa ao lado da estante. Estava cada vez mais nervosa. Sabia que não poderia levá-los todos, mas não conseguia decidir. De súbito, largou a seção de literatura brasileira e se dirigiu à estante vizinha. Correu os olhos durante alguns segundos e, na ponta dos pés, alcançou José Saramago na penúltima prateleira. Sorriu para a Jangada de Pedra.

Ficaram mais algum tempo passeando pela loja. Resolveram sair cada um com dois livros. Ele, carregando Schopenhauer e o Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues. Ela levava José Saramago e o Amor Natural, do Drummond. Odiava Nelson Rodrigues.

De novo na rua, caminharam em direção à avenida central da cidade. Chegaram à praça sem problemas. Sentaram-se num banco de cimento e começaram a rir da empreitada. Ele se gabava de ter previsto a falta de segurança da livraria. “Quem iria querer roubar livros?” – costumava dizer. Ela lamentava não poder trazer mais volumes. Levantaram-se e caminharam pela avenida até os trilhos do trem. Ali se despediram e cada qual foi para sua casa.

Depois do sucesso da investida, outras se seguiram. Adquiriram habilidade para abrir portas e assaltaram mais três livrarias. Na quarta, saíram carregando cinco livros cada um. Já não se preocupavam com polícia ou coisa parecida, tal a facilidade dos furtos. Entraram até num sebo, onde ela conseguiu um exemplar antiqüíssimo de Os Sermões, de Vieira, e ele, uma das poucas traduções de Heidegger para o português.

Certo dia, porém, um dos jornais da cidade publicou uma nota sobre o estranho caso das livrarias. Como os dois não liam jornais locais, não tomaram conhecimento do fato. A matéria dizia que a polícia começaria a vigiar as lojas de livros.

Desavisados, fizeram mais um furto e despreocupadamente foram beber cerveja numa lanchonete próxima à praça central. A polícia os encontrou folheando Pascal e Zola. Foram pegos em flagrante.

Na delegacia, um policial encaminhou os dois para interrogatório. O delegado parecia se divertir com a situação. Dirigia-se aos dois com sorrisos irônicos. A moça exigiu advogado e cela especial. Tinha curso superior.

— E a mocinha é formada em quê? — perguntou o delegado.
— Letras.
— Que bonitinho! O garotão, aí, também é formado?
— Não, eu ainda estudo. Filosofia.
— Olha, só, galera! — dirigindo-se aos policiais — o boneco faz Filosofia. Que gracinha!

As risadas soaram por toda a sala do delegado.

— Rapazinho delicado!
— Não tem curso de macho na faculdade?
— Vai fazer “adevogacia”, rapaz!

O delegado, ainda rindo, ordenou que o levassem dali:

— Leva o florzinha pra cela do fundo, junto com os dois grandões, que eu vou ver a situação da donzela aqui.

Depois, ordenou revista na casa dos dois. Em suas estantes, a prova dos outros furtos. Todos os livros foram apreendidos, até os que não haviam sido roubados.

Foi um escândalo. O rapaz era de família tradicional, descendente dos fundadores da cidade. Seu pai, jornalista e historiador famoso, fazia parte dos altos escalões do governo estadual. A moça, mais velha e de família pobre, foi acusada de tramar os assaltos e desencaminhar o pobrezinho.

Durante várias semanas, eles foram assunto principal da imprensa. Criou-se polêmica nacional. Na televisão, faziam pesquisas de rua. “O senhor acha que eles devem ficar presos?”. Um sociólogo importante, num programa de entrevistas, questionava “uma sociedade culturalmente falida, que não propicia saber e conhecimento à juventude”.

O âncora mais famoso da televisão vociferou que “um país onde jovens precisam roubar livros é vergonhoso!”. Um deputado federal, dono de programa de rádio, disse que “roubo é roubo; são ladrões, são dois vagabundos, têm de ficar é na cadeia!”.

A TV estatal fez uma reportagem sobre juventude e delinqüência, e a rede de televisão de maior audiência no país criou uma programação especial para o caso. “Eles devem ser punidos?”. Os telespectadores ligavam para a emissora e votavam. Os jornais diários tinham espaço reservado e até selo para o assunto.

Cantores de MPB fizeram um grande concerto pela liberdade dos acusados, e a Liga das Senhoras pela Moralidade organizou uma passeata exigindo sua manutenção na cadeia.

Do exterior chegaram manifestações de apoio aos jovens. A representação norte-americana da Comissão de Direitos Humanos veio até o Brasil especialmente para analisar a situação. Grupos de teatro anarquistas manifestaram apoio. Partidos políticos discutiram acirradamente o assunto. O Green Peace e o Sting não se pronunciaram.

Finalmente, o inquérito chegou à fase judicial e os dois foram condenados. Por serem réus primários, puderam cumprir a pena em liberdade.

Hoje, os dois ainda moram na mesma cidade. Ainda saem juntos para tomar cerveja e têm os mesmos amigos. As famílias perdoaram o ocorrido. Estão mais tranqüilos agora, mas planejam novas investidas. Só estão esperando que ele termine o curso de Filosofia. Melhor garantir cela especial.

Tentativa

Um homem caminhava sozinho pelas ruas do centro da cidade, sujo e com barba por fazer; as roupas gastas, mas sem rasgos ou remendos. Andava devagar, pensativo. Imaginava uma forma de arranjar mulher. Talvez ir a algum hotelzinho nos arredores da estação ferroviária ou, quem sabe, dar uns apertos, só para desafogar, ali mesmo, nos bancos da praça central, escondido pelos arbustos. Poderia ir até a outra praça, a da Igreja Matriz, que estava em reforma, cuja rua frontal transformara-se em passarela de prostitutas e travestis à procura de clientes. Mas não lhe agradava a idéia de pagar por uma mulher. Possuía dinheiro suficiente, mas preferia gastá-lo com bebida. Uma prostituta não fazia parte de seus planos. Resolveu caminhar mais.

Estava naquela cidade havia duas semanas e já se familiarizara com as ruas centrais. Hospedara-se em um hotel pequeno e muito sujo nas proximidades do terminal rodoviário e só ficava lá durante o dia, dormindo. À tardinha, saía para comprar cigarros e andar pela cidade. Voltava só pela manhã, depois de haver perambulado durante toda a noite. Nessa última tarde, não conseguira dormir. Sentia-se extremamente excitado. Precisava de mulher. Decidiu que à noite procuraria por uma.

Começou sua caminhada dessa noite pela rodoviária, mas logo se decepcionou, pois àquela hora só havia a turba de passageiros chegando e saindo da cidade. Mudou o trajeto. Foi parar perto da estação ferroviária, onde conheceu os hotéis que abrigavam casais de última hora para sexo rápido e pago. Viu que não conseguiria nada por aquelas bandas. Saiu dali e entrou em uma avenida arborizada e um pouco escura. Duas quadras acima, deparou-se com uma esquina mais iluminada, com semáforo, onde, à esquerda, erguia-se o prédio da faculdade católica. Tomava todo o quarteirão e era bastante irregular. Parecia ter sido construído aos poucos, cada parte ostentando arquitetura e idade distintas. Do lado oposto, várias lanchonetes, com mesas e cadeiras distribuídas pela calçada, apinhadas de jovens bebendo cerveja e refrigerante. Dirigiu-se a um dos bares e pediu uma cerveja ao garçom, um rapazinho magro que exibia sorridente sua intimidade com os freqüentadores.

Observou as moças que passavam. Calças apertadas e saias curtas, com pernas à mostra. Pensou que se estivesse limpo e barbeado poderia entabular conversa com alguma delas. Bobagem. Universitárias não lhe dariam atenção. Gostavam de se mostrar cultas e inteligentes e falavam demais. Melhor seria dar o fora daquele lugar. Aproveitando-se da distração do garçom, entretido numa conversa com os estudantes, levantou-se sem pagar a bebida e desapareceu na esquina.

Caminhava já desanimado pelo centro da cidade. Mais uma noite por aqui, pensava. Sem ter rumo certo, acabou voltando para os lados da faculdade. Passou pelo lado oposto ao dos bares e ainda viu os últimos estudantes deixando o prédio, que fechava os portões e se quedava silencioso e escuro. Novamente na rua dos hotéis, imaginou abordar alguma mulher e, em último caso, pagá-la.

Na parte escura da avenida, viu uma mendiga caída, completamente bêbada, emitindo sons ininteligíveis. Sem que ela protestasse, ergueu-a e fez com que apoiasse um dos braços em torno do seu pescoço. Virando a esquina, caminharam pela rua da estação, que terminava em um beco ermo e escuro, onde ele a soltou. Olhou-a demoradamente, indeciso ante desejo e repugnância. A mulher, caída ao chão, perguntou-lhe se tinha dinheiro.

Uma hora depois, algumas quadras adiante, no único bar aberto que avistou, pensava nos palavrões que a mulher lhe gritara e no cheiro ainda impregnado em suas roupas. Decidiu que um banho seria bom. Pediu uma dose de cachaça, bebeu-a de um gole e saiu. Voltou ao hotel onde se hospedara e ao se despir resolveu que no dia seguinte telefonaria aos homens que lhe arranjavam trabalho. Sempre tinham algum serviço para ele. Não era bom ficar muito tempo em um só lugar.

Caçada


Cheguei cansada naquele dia. O expediente no escritório fora puxado. Mil pessoas para atender; telefone tocando todo o tempo. Aquilo estava se tornando um inferno. Com a demissão de duas colegas do setor, meu serviço dobrara. Contenção de despesas. O resto do pessoal, com medo de também perder o emprego, trabalhava pesado sem reclamar. Serões, horas-extras e suspensão das pausas para lanche amiudavam-se.

À noite, sentada sobre a cama, pensava numa maneira de me livrar daquele emprego ou, pelo menos, diminuir o cansaço e a chateação ao fim do dia. Resolvi tomar um banho.Cumpri o ritual meticulosa e demoradamente. Despi-me com calma, abri a torneira do chuveiro e, enquanto a água gelada escorria sobre o corpo, ensaboei-me com movimentos circulares, fazendo muita espuma. O calor aos poucos foi sendo substituído por uma sensação de frescor e limpeza. Lembrei-me da propaganda do sabonete na televisão.

Terminado o banho, enxuguei-me e saí do banheiro. O corpo, ao menos, pode-se lavar. Senti-me mais animada. Afinal, todos têm suas rotinas e ninguém morre por isso. Penteei-me diante do espelho do quarto. Sentindo a falta do desodorante, voltei ao banheiro para procurá-lo.

Quando abri a porta, estaquei. Lá estava ele a um canto da parede. Enorme, viscoso, olhando-me. O sapo. Não era verde, como nos livros infantis; era preto, quase todo, apenas com miúdas bolas brancas espalhadas por toda a pele. Com os olhos fixos em mim, parecia sorrir. Um sorriso asqueroso e diabólico. Não se mexia. Não precisava. Seu olhar exercia fascinação e domínio suficientes para me manter paralisada.

Assim que consegui sair do torpor, gritei tudo o que meus pulmões permitiram e puxei a porta do banheiro, que bateu com um ruído seco. Corri para o quarto e comecei a chorar. Não conseguia me livrar daqueles olhos. Imaginava aquele bicho me olhando durante o banho. Quase podia sentir sua pele rugosa encostando-se à minha. A pele, gelada como a água do chuveiro. Entrei em desespero. Chorei até me desmanchar.

Adormeci exausta. Acordei ainda assustada, com a impressão de que alguém me espreitava. Fazia movimentos bruscos para os lados, como a surpreender algo que fosse me atacar. Tinha de ir ao trabalho. Quase agradeci a Deus por aquele emprego. Cheguei ao escritório mais cedo do que de costume. Cumprimentei mecanicamente o pessoal dos outros departamentos. Ao abrir a porta da minha sala, lá estava ele novamente, sobre minha mesa. O mesmo olhar, o mesmo sorriso. Parecia maior e mais brilhante. Saí aos trambolhões, tropeçando em tudo o que havia à minha frente.

Na rua, ainda sem direção, entrei no primeiro ônibus que vi. Atônita, desci em um lugar movimentado do centro da cidade. Quando pus o pé na calçada, eu o vi, grudado a um dos pilares do ponto de ônibus.

Comecei a correr novamente, esbarrando nas pessoas, sem vê-las, atravessando ruas sem prestar atenção aos semáforos. Ouvia as buzinas e os gritos dos motoristas, mas como ruídos distantes, que não faziam sentido. Só pensava em fugir.

Sem fôlego, parava às vezes para respirar. Cada parada aumentava o horror. Eu o via nos bancos dos carros, nas sacadas dos prédios, nas cadeiras dos restaurantes. As crianças o traziam, risonho, sobre as cabeças.

Corri até não mais poder. Já não sentia mais dores. Não sentia e não pensava nada. Parei, no fim da tarde, em um banco de praça, já sem alma. Não sabia onde estava. Olhava ao redor e não via nada. Não sabia se ele estava por perto. Não me importava.

Dormi naquele banco a noite toda. Acordei com o sol batendo em meu rosto pela manhã. Todo o pânico havia desaparecido. Eu estava decidida. Não havia nenhum bicho por ali, mas eu sabia que os sapos estavam à espreita, prontos para atacar.

Hoje eu os caço. Larguei o emprego no escritório para me dedicar a essa atividade. A cada dia aprimoro-me no meu ofício. Matei milhares deles. Diuturnamente, eu os procuro. Foco-os com uma lanterna e, assim, despidos de seu olhar satânico, eles se tornam indefesos. Iluminados, e descoberta sua fragilidade, só podem ouvir o estampido da bala que os mata.

Já os encontrei nas ruas, bares, bancos. As lojas de departamento os escondem às centenas. Descobri vários deles em escolas, berçários e parques infantis. Eles invadem as igrejas e as casas. Não raro, encontram-se sob a roupa das pessoas.Resolvi investir todo o meu tempo em seu extermínio. Alguém precisa livrar a humanidade. Procuro reforços.

Jorge

Tenho, queridos e queridas correspondentes, um compromisso com vocês: escrever meu romance “O Cortiço Revisitado”. No entanto, não encontro inspiração, principalmente porque não penso em outra coisa que não dívidas contraídas em momentos de total irresponsabilidade.

Peço-lhes as mais humildes desculpas por não ter cumprido a promessa. Tentarei sanar, pelo menos em parte, essa falha, por meio da descrição dos personagens da obra. Vamos por ordem de entrada no cortiço.

A primeira quitinete, ou apartamento, como insiste em dizer o proprietário, é ocupada por Jorge, funcionário de uma concessionária de automóveis na cidade-satélite. Jorge é branco, tem entre 35 e 40 anos, não mais, pele boa, cabelos curtos e lisos, brilhantes, muito negros, sem fios brancos. Bonito cabelo, assim como o dono, um belo homem, de estatura mediana, talvez uns 1,72m, não magro, cheinho, sem chegar a ser gordo. Em forma, para falar a verdade, já que caminha diariamente. Pernas grossas.

Jorge parece ter um bom cargo na concessionária e uma boa situação financeira. Sua quitinete, maior que as outras, está bem mobiliada, inclusive com uma boa cozinha, onde há itens como fogão, geladeira, forno de microondas e quetais. Ele também possui carro, um modelo recente, em excelente estado, turbinado e, aparentemente, com acessórios como aparelho de som, vidro elétrico e quejandos.

Vive sozinho e bem. Aos fins de semana, convida os outros moradores para uma cervejinha, almoços, jantares. Na verdade, duas moradoras do cortiço (que descreveremos mais tarde) fazem a comida, pois gostam muito dele. São de Minas Gerais, ele e elas, e se entendem bem. Nunca o vi trazer companhia diferente à quitinete.

Nos fins de semana, quando está com as amigas, tomando cerveja e preparando alguma comida, Jorge – que usa aparelho nos dentes e fala com a língua entre eles – gosta de ouvir música. De gosto eclético, tem, obviamente, suas preferências, entre elas, a versão original, em inglês, de "Festa no Apê", gravada no Brasil pelo cantor Latino. É uma das infalíveis, todos os sábados.

Descobri, num desses fins de semana com cerveja, que Jorge foi ator. Tentou até ser contratado por uma emissora de TV, já extinta, no Rio de Janeiro, onde residiu enquanto tentava a carreira artística. A conversa, no entanto, não evoluiu o suficiente para serem revelados os motivos da desistência de tal profissão e a mudança para Brasília.

Jorge se veste muito bem, excelentes calças, camisas e sapatos, arranjados entre si de maneira sóbria e formal, sem exageros. O cabelo curto e a roupa dão-lhe um ar viril só contrariado pela fala mole, a voz engasgada e os trejeitos com as mãos que costuma fazer quando arruma o cabelo. Bonito cabelo.

Apresentado o personagem, passaremos a chamá-lo, doravante, de Jorge, o viado.

Texto do período em que a autora viveu em Brasília. Registrava suas impressões da cidade em crônicas, por meio das quais mantinha correspondência com amigos e familiares. O original, manuscrito, foi encontrado nos escombros do (agora) célebre apartamento do SOF Norte, onde a autora se reunia com um grupo de amigas, com as quais fundou uma sociedade secreta de escritoras. Nessa época, iniciou sua obra-prima, “O Cortiço Revisitado”.

Memórias de uma foca

Capítulo I

Tudo começou em 1995. Começar com tudo começou é horrível, mas como é uma foca que escreve, perdoa-me, caro leitor. Caro leitor tampouco é expressão jornalística – é coisa de Machado de Assis. E tem outro inconveniente: a dupla pretensão. A primeira é achar que terei leitor; a segunda, usar coisa de Machado de Assis.

Mas continuemos. Para uma principiante, eu já estava bem velhinha. Como nasci em 64, contava na época com 30 anos. Não te apresses em fazer contas, leitor. Sou de dezembro. Os fatos da narrativa se iniciam em abril, portanto, faltavam oito meses para 31. Vá lá: 30 anos e quatro meses, se queres exatidão. De todo jeito, balzaca.

Pois bem. Nesse malfadado ano, meu amigo Oscar – jornalista, formado, com diploma e carteirinha – chamou-me para trabalhar num semanário de que era editor. Ainda não expliquei que sou formada em Letras, pelas gloriosas Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (hoje Universidade Católica Dom Bosco), e até então só havia cursado um semestre de Comunicação Social na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mesmo assim, Oscar insistiu em me levar para seu jornal.

Devo abrir parênteses aqui para confessar que esse meu amigo era encantado com minha capacidade intelectual. Sim, é verdade. Não penses que o encanto era devido a outros dotes, talvez mais palpáveis, que eu possa ter. Oscar não é disso. E também meus atributos físicos não são lá essas coisas. O verdadeiro fascínio que Oscar tinha por meu potencial – repito, intelectual – derivava basicamente de dois fatores.

O primeiro era a total falta de intimidade que ele mantinha com a língua portuguesa. Tão inculto quanto, mas não tão belo, meu amigo era alérgico à gramática da última flor do Lácio. Os longos e difíceis anos de convivência não foram suficientes para o convencer de que a crase é um fenômeno, não um acento gráfico, que não ocorre diante de palavras masculinas e verbos, já que não vêm precedidos por artigo definido feminino. Tocar no assunto empipocava-lhe o corpo. Meus conhecimentos morfológicos, sintáticos e ortográficos, então, assumiam, diante de seus olhos, grandiosidade que não têm.

O outro motivo, menos honroso, que fazia com que meus textos de comportada correção e nenhuma ousadia formal lhe parecessem pérolas era minha arrogância quase sem precedentes na história da humanidade. Eu adorava lhe explicar questões de gramática de uma maneira pedante o suficiente para ninguém entender, quanto mais ele, que já não se dava bem com o assunto.

Por conta disso, considerando que eu era um expoente da arte de escrever, Oscar levou-me para o tal hebdomadário – além de incompreensíveis explicações gramaticais, eu também era dada a palavras inusuais do vernáculo. Foi assim que iniciei minha vida de foca, cujos episódios passo a lhe narrar, caro(a) leitor(a). Agora com a inclusão politicamente correta do gênero feminino no vocativo. Os tempos pedem.

(Único capítulo encontrado do livro "Memórias de uma Foca")