Tenho, queridos e queridas correspondentes, um compromisso com vocês: escrever meu romance “O Cortiço Revisitado”. No entanto, não encontro inspiração, principalmente porque não penso em outra coisa que não dívidas contraídas em momentos de total irresponsabilidade.
Peço-lhes as mais humildes desculpas por não ter cumprido a promessa. Tentarei sanar, pelo menos em parte, essa falha, por meio da descrição dos personagens da obra. Vamos por ordem de entrada no cortiço.
A primeira quitinete, ou apartamento, como insiste em dizer o proprietário, é ocupada por Jorge, funcionário de uma concessionária de automóveis na cidade-satélite. Jorge é branco, tem entre 35 e 40 anos, não mais, pele boa, cabelos curtos e lisos, brilhantes, muito negros, sem fios brancos. Bonito cabelo, assim como o dono, um belo homem, de estatura mediana, talvez uns 1,72m, não magro, cheinho, sem chegar a ser gordo. Em forma, para falar a verdade, já que caminha diariamente. Pernas grossas.
Jorge parece ter um bom cargo na concessionária e uma boa situação financeira. Sua quitinete, maior que as outras, está bem mobiliada, inclusive com uma boa cozinha, onde há itens como fogão, geladeira, forno de microondas e quetais. Ele também possui carro, um modelo recente, em excelente estado, turbinado e, aparentemente, com acessórios como aparelho de som, vidro elétrico e quejandos.
Vive sozinho e bem. Aos fins de semana, convida os outros moradores para uma cervejinha, almoços, jantares. Na verdade, duas moradoras do cortiço (que descreveremos mais tarde) fazem a comida, pois gostam muito dele. São de Minas Gerais, ele e elas, e se entendem bem. Nunca o vi trazer companhia diferente à quitinete.
Nos fins de semana, quando está com as amigas, tomando cerveja e preparando alguma comida, Jorge – que usa aparelho nos dentes e fala com a língua entre eles – gosta de ouvir música. De gosto eclético, tem, obviamente, suas preferências, entre elas, a versão original, em inglês, de "Festa no Apê", gravada no Brasil pelo cantor Latino. É uma das infalíveis, todos os sábados.
Descobri, num desses fins de semana com cerveja, que Jorge foi ator. Tentou até ser contratado por uma emissora de TV, já extinta, no Rio de Janeiro, onde residiu enquanto tentava a carreira artística. A conversa, no entanto, não evoluiu o suficiente para serem revelados os motivos da desistência de tal profissão e a mudança para Brasília.
Jorge se veste muito bem, excelentes calças, camisas e sapatos, arranjados entre si de maneira sóbria e formal, sem exageros. O cabelo curto e a roupa dão-lhe um ar viril só contrariado pela fala mole, a voz engasgada e os trejeitos com as mãos que costuma fazer quando arruma o cabelo. Bonito cabelo.
Apresentado o personagem, passaremos a chamá-lo, doravante, de Jorge, o viado.
Texto do período em que a autora viveu em Brasília. Registrava suas impressões da cidade em crônicas, por meio das quais mantinha correspondência com amigos e familiares. O original, manuscrito, foi encontrado nos escombros do (agora) célebre apartamento do SOF Norte, onde a autora se reunia com um grupo de amigas, com as quais fundou uma sociedade secreta de escritoras. Nessa época, iniciou sua obra-prima, “O Cortiço Revisitado”.