terça-feira, 6 de junho de 2023

sexta-feira, 28 de março de 2014

Muito além da saia curta


Desde que me mudei para o condomínio onde resido há aproximadamente um ano, comecei a receber bilhetes deixados nas janelas do apartamento e no pára-brisa do meu carro. Além disso, o porteiro do turno da noite batia na minha porta de madrugada com o pretexto de me entregar correspondência (que, pela praxe do condomínio, deve ser entregue durante o dia). Os bilhetes anônimos e a aparição do funcionário durante a madrugada me assustavam bastante, pois todos sabem que moro só. E houve um agravante: com problemas na fechadura, chamei um chaveiro que trocou as chaves do apartamento e me informou que o dano fora causado por tentativa de forçar a fechadura por fora. Alguns dias depois, a chave da porta do bloco inteiro também teve de ser trocada, o que foi feito pelo condomínio e pode ser comprovado.

Recolhi os bilhetes, o cartão do chaveiro com o nome do atendente, que poderia servir de testemunha do forçamento da porta, e levei à polícia para dar queixa de (a mim pareceu) intimidação. Na delegacia, disseram-me que isso seria impossível, pela inexistência de autoria, ou seja, não havia uma pessoa contra quem apresentar a queixa, o que me foi confirmado por advogados amigos. Resignei-me. Também por orientação de advogados, relatei, oficialmente, por escrito, ao síndico os fatos, com cópia dos bilhetes, e solicitei atenção à questão de segurança. O condomínio não tomou nenhuma providência, pelo contrário, o síndico limitou-se a receber minha carta, ouvir meu relato e dizer que nunca soube desse tipo de problema no residencial.

Depois de algum tempo, numa sexta-feira em que saí com amigos, voltei para casa de madrugada. O porteiro esperou que meus amigos que foram me levar fossem embora e me abordou (estando eu sozinha), na porta do meu bloco, às 3h, com um pacote na mão, dizendo que chegara correspondência. Eu lhe disse que me entregasse a encomenda de acordo com a praxe do condomínio, durante o dia, por meio de uma notificação, não naquele horário. Imediatamente, comuniquei o síndico, por mensagem eletrônica, do ocorrido. No dia seguinte, recebi um e-mail do síndico, dizendo que o porteiro passara "mal" por conta de minha repreensão.


E quanto ao fato de eu passar "mal", do susto por ter sido abordada por um homem, na porta do meu apartamento, às 3h da manhã, sozinha? Meu medo não conta? Parece-me que não. As batidas na minha porta de madrugada e o motivo de o funcionário não seguir a praxe (não soube de nenhum morador ou moradora que tenha recebido correspondência nesse horário) até hoje não me foram explicados.


Depois, ao reclamar novamente ao síndico, recebi um e-mail dizendo que nunca aconteceu nada parecido no condomínio, em suas palavras:

 “Reitero mais uma vez, que nesse Condomínio Residencial (***), nós NUNCA tivemos nenhum tipo (SIC) problemas relacionados ao que a Sra relata, como: bilhetes anônimos em sua porta, janelas, vidro do seu carro, batidas em sua porta altas horas da madrugada, batidas ritmadas em sua parede, como sendo de pessoa. Tal fato ocorreu (ou se é que ocorreu), somente após a sua vinda para esse condomínio.” Cópia exata do trecho da mensagem do síndico, com exceção do nome do residencial.
Por essa mensagem, vê-se que o síndico credita a “culpa” pelas agressões (bilhetes, assédio na madrugada, fechadura forçada) a mim, ou seja, à agredida. Ele diz que o que eu relatei NUNCA aconteceu no condomínio antes da minha chegada, resumindo: “eu trouxe o problema"! Além disso, duvida da ocorrência dos fatos – “(ou se é que ocorreu)” – mesmo com a apresentação das provas (tenho os bilhetes, as cópias e o cartão do chaveiro), insinuando que eu tenha inventado os acontecimentos relatados.

Resolvi tornar pública essa situação porque o silêncio e a vergonha da(s) ofendida(s) são utilizados pelos agressores. Estou realmente me sentindo muito mal, mas não sei a quem recorrer. Vivo de portas e janelas trancadas, tenho medo de qualquer “sombra” que passe pelas paredes. E ainda sou acusada de ser a causadora dos problemas, que “NUNCA” aconteceram neste condomínio antes da "minha vinda", além de ser ridicularizada em mensagens insinuando que eu “inventei” os fatos – ou seja, que eu menti – (mesmo com as provas em mãos).

Enfim, sou a agredida, mas acusada de culpa pela situação e exposta ao ridículo. O que o síndico quis dizer quando questiona: "(ou se é que ocorreu)"? Que sou louca, que inventei os fatos? 

Disso tudo, veio-me uma lembrança desagradável. Eu tinha 15 anos, passeava com minha mãe pela Rua 14 de Julho, no centro de Campo Grande. Vésperas de Natal, a cidade apinhada de gente; entramos numa pequena lanchonete, lotada, e nos alinhamos ao balcão, achando graça do tumulto e esperando a vez de fazer o pedido. A certa altura, um homem me beliscou a perna esquerda, bem abaixo da bunda. Assustada e tímida, contei à minha mãe, que imediatamente deu a grita: “Ei, tem um cara bolinando minha filha!”. Todos se voltaram para o pequeno grupo que formávamos. O homem encarou a turba e, altivamente: “Estou aqui com minha esposa, linda, acham que vou mexer com essa pirralha gorducha?” E saiu, arrastando a mulher pela mão. As pessoas se viraram para mim, rindo-se e apontando a menina gorda de saia curta. Minha mãe me abraçou. Chorei. O homem foi eficiente: molestou-me, negou o fato e ainda se utilizou de minha vergonha e de minha aparência para fazer escárnio público.

Sinto-me como aquela menina de 15 anos. Agredida, indefesa e ridicularizada. Só que sem minha mãe para me abraçar.


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Quintal

No lugar mais fétido da casa, onde os pombos defecam, é lá que fico. De uma moita de capim amarelecido, que cobre quase todo o acesso à porta da frente, saem duas baratas. Jogo álcool nelas. Que não entrem. Ouço o barulho das goiabas que caem apodrecidas de um pé infestado de bichos. Num canto, dois cachorros dormem sobre um cobertor sujo. Um pássaro vem todos os dias, no mesmo horário, e canta. O cheiro do álcool se mistura ao das frutas podres. O vento leve das tardes de verão espalha o odor e o asco. Merda de passarinho.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Enquanto isso, na sala de aula

Do lado de fora da universidade, operários almoçam numa mesa de madeira, mesmo material do barracão onde dormem, penso. Um deles passa um pedaço de carne para o prato de outro. São só esses dois, por enquanto. Logo chega mais um, que entra no barracão depois de jogar fora uma bituca de cigarro. Outros vêm-se juntar à mesa, numa movimentação de marmitas, talheres, pratos, sorrisos, copos. Vejo-os pela janela da sala onde participo de um curso de literatura. Imagino que contem piadas, enquanto observo a troca de comida entre eles. Estou num dos prédios mais novos da universidade, construído para a faculdade de computação, a construção ainda não está terminada. Ao lado as obras continuam. Um dos participantes do curso faz uma pergunta importante sobre representação da realidade na literatura. Tenho de prestar atenção. Dou uma espiada rápida, os operários estão às gargalhadas, a piada deve ser boa. Não dá para ouvi-los, o ar-condicionado está ligado, as janelas, fechadas.

Nasce Cátia K.

Diante do verde deslumbrante das águas do litoral natalense, Cátia K. sentia o vento nos cabelos e observava o namorado, Fred M. Neto, um jovem engenheiro eletrônico natural de São Paulo. Enquanto contemplava os músculos do rapaz de 1,90m de altura, com a pele escura brilhando de suor sob o sol equatoriano da capital potiguar, a bela morena lembrava-se de sua própria história.

Cátia K. nasceu numa família de músicos. O pai tocou violão com João Donato em 1964, no Beco das Garrafas, e deixou a música para entrar no mercado financeiro. Tornou-se milionário. Nos fins de semana, em sua casa de campo, para a família e os amigos mais chegados, sempre mostrava a primeira versão de “O pato”, de João Gilberto. Repetia, exultante, ao fim de cada execução: "Viram? É bem diferente daquela que todos conhecem!" Nessa hora, a mãe servia mais bebida.

A mulher também teve seu passado musical. Participou de um momento importante da MPB. Enquanto Elis Regina gritava “Arrastão”, a mãe de Cátia K. e mais duas backing vocals, ou cantoras de apoio – como gostariam Tinhorão e Aldo Rebelo –, seguravam o resto da canção. Depois disso, também participou de discos de Emilinha Borba, Doris Monteiro e, vejam só, Chico Buarque – ouvidos atentos podem perceber o seu canto soprano soterrado na mixagem de "A banda".

O encontro dos dois aconteceu numa noitada no fim de 1967. Nunca deram detalhes sobre aquela noite. Cátia descobriu que foi uma reunião liberal, bem à moda da época. Ela sempre pensou que festinhas em que ninguém é de ninguém nunca renderam lares burgueses, mas sua família era prova contrária. Nasceu muitos anos depois da idílica orgia protagonizada pelos progenitores.

Por causa dos pais, sabia tudo sobre João Gilberto, inclusive suas músicas. Percebia a diferença entre lá sétima maior sustenido e sol em ré menor na quarta-feira de cinzas. Também entendia porque Nara resolvera subir o morro e resgatar velhos sambistas negros. Mais de uma vez ouviu em casa: "O motivo não era musical."

Não foi dos pais, porém, que lhe vieram as grandes influências. A governanta Madalena del Puentes Saracuja, nascida na Argentina e criada em Monte Carlo, com passagens por Singapura, Pedro Juan Caballero e Nova Andradina, marcou decisivamente seu contato com as melodias, ritmos e harmonias. Profissional de respeito, já era governanta no período em que Cátia nasceu. Detalhista, de relacionamento seco e preciso com outros empregados, mostrou à bela menina obras de Chopin, Bartok, Wagner, Puccini, Copeland e Damião Experiença. As sessões musicais eram secretas. Ninguém a elas tinha acesso, somente as duas desfrutavam do prazer sonoro, mesclado aos toques que prolongavam fisicamente o deleite musical que a experiente senhora apresentava a Cátia K.

A governanta também tentara a carreira musical. Não gostava de falar de seu passado. A menina descobrira que suas investidas foram no canto erudito, e Maria Callas era culpada por seu insucesso. Mas não foi de sua boca que ouvira isso. Os detalhes juntaram-se na perspicácia de Cátia, atenta às pistas que a empregada deixara ao longo dos anos. Callas nunca entrava numa sessão de audição de divas da ópera que Madalena organizava. Na única vez que se ouviu seu canto no quarto, a argentina tirou o disco da vitrola e o jogou contra a parede, espalhando cacos de vinil pelo aposento. “Outro disco na capa errada”, explicou.

Enlevada pelas lembranças, Cátia K. voltou-se à paisagem paradisíaca que a cercava, lembrando-se de que um dos motivos que fizeram seu pai contratar Madalena fora o zelo com os discos, primeiramente os de vinil, depois, os CDs, que não podiam estar fora de capa, muito menos com poeira ou marcas de dedos, o que o deixava possesso. Não viveu para o MP10.

Cátia K. virou-se para o namorado: “Amor, vamos para o hotel? Quero uma ducha fria, uma salada de rúcula e uma massagem completa. Precisamos também terminar os cálculos para o próximo trabalho." Fred M. sorriu.

Composição, criação e argumento: Oscar Rocha
Colaboração: Fred Andrade
Pai de Cátia K. inspirado em Jefferson Contar
Adaptação e texto: Ana Silva

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Merda


A porra da porta do carro encrencou de novo, tenho de mandar consertar essa bosta. Vamos, vamos, destrave, tenho de sair. Essa rua está horrível, meia hora desviando de buracos, chega na esquina com a avenida para tudo. Anda. Ô, lerdeza. Agora que a coisa começa a se mover, fecha o sinal. Anda. Dá para descer mais rápido, aleluia, vamos. Ô, ciclista filho da puta! Como é que entra assim, na frente da gente? Atraso, atraso. Tenho de chegar ao escritório rápido. Só resolver problema. Consegui um otário pra comprar o apartamento, aquela vaca da proprietária resolveu aumentar o preço. Caralho. Será que ela não vê que o bairro é podre, o apê é velho? Burra velha. Cacete! Corno, como é que me fecha desse jeito? E essa lata velha aqui tentando podar pela direita? Não deixo. Vamos ver, feladaputa. Tomou? Vou pegar a outra rua, deve estar menos movimentada. Também, com tanto buraco. E essa merda de conserto da pracinha, orra, essa gente não tem o que fazer? Trancam metade da via pra arrumar uma porcaria de uma praça que não serve pra nada. Não vou chegar nunca. Velho da porra! Sai da frente! O cara a 20 por hora. Merda. Não dá nem pra desviar, o carro do outro lado também tá a vinte. Tinha de ser mulher. Putz, o radar. 50 por hora, nesta rua? Quem é que põe essa velocidade? Não veem, não veem? Viado! Me deu uma fechada! Filho da puta, ainda com adesivo de “na mão de deus”. Na mão de deus o cacete! Corno, tirou uma fina! Juro, se eu tivesse um revólver! E agora essa lei de parar em faixa. Cara, como tem pedestre sem noção, bando de abusado. Anda, porra, anda. Não chego nunca.

- Bom dia, D. Judite, como vai?
- Na paz de deus, meu filho.

- Por favor, vamos entrar. Na paz de deus, senhora.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Meu coração não se cansa de ter esperança

Vejam que lindo Valiosa escreveu:

Essa foto tem cheiro de pão fresco na manhã. Lembrei-me do padeiro que nos fornecia pães em curitiba,nos anos sessenta. Ele vinha de Kombi e deixava os pães no saco de algodão branco bordado que era deixado na porta da frente na casa. No dia em que o padeiro vinha cobrar a caderneta, durante a tarde, nós crianças da vila, ficávamos na espreita, era só ele bobear que nós faturávamos um ou outro doce, tipo sonho, de dentro da Kombi largada aberta. Hoje penso que se eu tivesse a consciência de que o padeiro tinha tantas bonecas para sustentar talvez eu não afanasse sonhos dele.