No lugar mais fétido da casa, onde os pombos defecam, é lá que fico. De uma moita de capim amarelecido, que cobre quase todo o acesso à porta da frente, saem duas baratas. Jogo álcool nelas. Que não entrem. Ouço o barulho das goiabas que caem apodrecidas de um pé infestado de bichos. Num canto, dois cachorros dormem sobre um cobertor sujo. Um pássaro vem todos os dias, no mesmo horário, e canta. O cheiro do álcool se mistura ao das frutas podres. O vento leve das tardes de verão espalha o odor e o asco. Merda de passarinho.
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Enquanto isso, na sala de aula
Do lado de fora da universidade, operários almoçam numa mesa de madeira, mesmo material do barracão onde dormem, penso. Um deles passa um pedaço de carne para o prato de outro. São só esses dois, por enquanto. Logo chega mais um, que entra no barracão depois de jogar fora uma bituca de cigarro. Outros vêm-se juntar à mesa, numa movimentação de marmitas, talheres, pratos, sorrisos, copos. Vejo-os pela janela da sala onde participo de um curso de literatura. Imagino que contem piadas, enquanto observo a troca de comida entre eles. Estou num dos prédios mais novos da universidade, construído para a faculdade de computação, a construção ainda não está terminada. Ao lado as obras continuam. Um dos participantes do curso faz uma pergunta importante sobre representação da realidade na literatura. Tenho de prestar atenção. Dou uma espiada rápida, os operários estão às gargalhadas, a piada deve ser boa. Não dá para ouvi-los, o ar-condicionado está ligado, as janelas, fechadas.
Nasce Cátia K.
Diante do verde deslumbrante das águas do litoral natalense, Cátia K. sentia o vento nos cabelos e observava o namorado, Fred M. Neto, um jovem engenheiro eletrônico natural de São Paulo. Enquanto contemplava os músculos do rapaz de 1,90m de altura, com a pele escura brilhando de suor sob o sol equatoriano da capital potiguar, a bela morena lembrava-se de sua própria história.
Cátia K. nasceu numa família de músicos. O pai tocou violão com João Donato em 1964, no Beco das Garrafas, e deixou a música para entrar no mercado financeiro. Tornou-se milionário. Nos fins de semana, em sua casa de campo, para a família e os amigos mais chegados, sempre mostrava a primeira versão de “O pato”, de João Gilberto. Repetia, exultante, ao fim de cada execução: "Viram? É bem diferente daquela que todos conhecem!" Nessa hora, a mãe servia mais bebida.
A mulher também teve seu passado musical. Participou de um momento importante da MPB. Enquanto Elis Regina gritava “Arrastão”, a mãe de Cátia K. e mais duas backing vocals, ou cantoras de apoio – como gostariam Tinhorão e Aldo Rebelo –, seguravam o resto da canção. Depois disso, também participou de discos de Emilinha Borba, Doris Monteiro e, vejam só, Chico Buarque – ouvidos atentos podem perceber o seu canto soprano soterrado na mixagem de "A banda".
O encontro dos dois aconteceu numa noitada no fim de 1967. Nunca deram detalhes sobre aquela noite. Cátia descobriu que foi uma reunião liberal, bem à moda da época. Ela sempre pensou que festinhas em que ninguém é de ninguém nunca renderam lares burgueses, mas sua família era prova contrária. Nasceu muitos anos depois da idílica orgia protagonizada pelos progenitores.
Por causa dos pais, sabia tudo sobre João Gilberto, inclusive suas músicas. Percebia a diferença entre lá sétima maior sustenido e sol em ré menor na quarta-feira de cinzas. Também entendia porque Nara resolvera subir o morro e resgatar velhos sambistas negros. Mais de uma vez ouviu em casa: "O motivo não era musical."
Não foi dos pais, porém, que lhe vieram as grandes influências. A governanta Madalena del Puentes Saracuja, nascida na Argentina e criada em Monte Carlo, com passagens por Singapura, Pedro Juan Caballero e Nova Andradina, marcou decisivamente seu contato com as melodias, ritmos e harmonias. Profissional de respeito, já era governanta no período em que Cátia nasceu. Detalhista, de relacionamento seco e preciso com outros empregados, mostrou à bela menina obras de Chopin, Bartok, Wagner, Puccini, Copeland e Damião Experiença. As sessões musicais eram secretas. Ninguém a elas tinha acesso, somente as duas desfrutavam do prazer sonoro, mesclado aos toques que prolongavam fisicamente o deleite musical que a experiente senhora apresentava a Cátia K.
A governanta também tentara a carreira musical. Não gostava de falar de seu passado. A menina descobrira que suas investidas foram no canto erudito, e Maria Callas era culpada por seu insucesso. Mas não foi de sua boca que ouvira isso. Os detalhes juntaram-se na perspicácia de Cátia, atenta às pistas que a empregada deixara ao longo dos anos. Callas nunca entrava numa sessão de audição de divas da ópera que Madalena organizava. Na única vez que se ouviu seu canto no quarto, a argentina tirou o disco da vitrola e o jogou contra a parede, espalhando cacos de vinil pelo aposento. “Outro disco na capa errada”, explicou.
Enlevada pelas lembranças, Cátia K. voltou-se à paisagem paradisíaca que a cercava, lembrando-se de que um dos motivos que fizeram seu pai contratar Madalena fora o zelo com os discos, primeiramente os de vinil, depois, os CDs, que não podiam estar fora de capa, muito menos com poeira ou marcas de dedos, o que o deixava possesso. Não viveu para o MP10.
Cátia K. virou-se para o namorado: “Amor, vamos para o hotel? Quero uma ducha fria, uma salada de rúcula e uma massagem completa. Precisamos também terminar os cálculos para o próximo trabalho." Fred M. sorriu.
Composição, criação e argumento: Oscar Rocha
Colaboração: Fred Andrade
Pai de Cátia K. inspirado em Jefferson Contar
Adaptação e texto: Ana Silva
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
Merda
A porra da porta do carro encrencou de novo, tenho de
mandar consertar essa bosta. Vamos, vamos, destrave, tenho de sair. Essa rua
está horrível, meia hora desviando de buracos, chega na esquina com a avenida
para tudo. Anda. Ô, lerdeza. Agora que a coisa começa a se mover, fecha o
sinal. Anda. Dá para descer mais rápido, aleluia, vamos. Ô, ciclista filho da
puta! Como é que entra assim, na frente da gente? Atraso, atraso. Tenho de
chegar ao escritório rápido. Só resolver problema. Consegui um otário pra
comprar o apartamento, aquela vaca da proprietária resolveu aumentar o preço.
Caralho. Será que ela não vê que o bairro é podre, o apê é velho? Burra velha.
Cacete! Corno, como é que me fecha desse jeito? E essa lata velha aqui tentando
podar pela direita? Não deixo. Vamos ver, feladaputa. Tomou? Vou pegar a outra
rua, deve estar menos movimentada. Também, com tanto buraco. E essa merda de
conserto da pracinha, orra, essa gente não tem o que fazer? Trancam metade da via
pra arrumar uma porcaria de uma praça que não serve pra nada. Não vou chegar
nunca. Velho da porra! Sai da frente! O cara a 20 por hora. Merda. Não dá nem
pra desviar, o carro do outro lado também tá a vinte. Tinha de ser mulher.
Putz, o radar. 50 por hora, nesta rua? Quem é que põe essa velocidade? Não veem,
não veem? Viado! Me deu uma fechada! Filho da puta, ainda com adesivo de “na
mão de deus”. Na mão de deus o cacete! Corno, tirou uma fina! Juro, se eu
tivesse um revólver! E agora essa lei de parar em faixa. Cara, como tem
pedestre sem noção, bando de abusado. Anda, porra, anda. Não chego nunca.
- Bom dia, D. Judite, como vai?
- Na paz de deus, meu filho.
- Por favor, vamos entrar. Na paz de deus, senhora.
quarta-feira, 11 de julho de 2012
Meu coração não se cansa de ter esperança
Vejam que lindo Valiosa escreveu:
Essa foto tem cheiro de pão fresco na manhã. Lembrei-me do padeiro que nos fornecia pães em curitiba,nos anos sessenta. Ele vinha de Kombi e deixava os pães no saco de algodão branco bordado que era deixado na porta da frente na casa. No dia em que o padeiro vinha cobrar a caderneta, durante a tarde, nós crianças da vila, ficávamos na espreita, era só ele bobear que nós faturávamos um ou outro doce, tipo sonho, de dentro da Kombi largada aberta. Hoje penso que se eu tivesse a consciência de que o padeiro tinha tantas bonecas para sustentar talvez eu não afanasse sonhos dele.
Essa foto tem cheiro de pão fresco na manhã. Lembrei-me do padeiro que nos fornecia pães em curitiba,nos anos sessenta. Ele vinha de Kombi e deixava os pães no saco de algodão branco bordado que era deixado na porta da frente na casa. No dia em que o padeiro vinha cobrar a caderneta, durante a tarde, nós crianças da vila, ficávamos na espreita, era só ele bobear que nós faturávamos um ou outro doce, tipo sonho, de dentro da Kombi largada aberta. Hoje penso que se eu tivesse a consciência de que o padeiro tinha tantas bonecas para sustentar talvez eu não afanasse sonhos dele.
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