segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Assassina serial

Cinza opaco, o furgão estacionou quase sem ser percebido a cerca de quinhentos metros do local da festa. Cátia K. desceu do veículo e deu alguns passos vagarosos, observando o ambiente. Um pouco longe, analisou, mas assim é melhor, mais discreto, decidiu, enquanto voltava para o automóvel, os longos cabelos negros presos no alto da cabeça. Depois de alguns minutos, saiu do carro uma moça com peruca loira, camisete branca e minissaia jeans.

Balançando os cabelos esticados com escova progressiva, num tom de loiro que contrastava com sua bela pele morena, Cátia K. dirigiu-se à festa. Ao som do axé em altíssimo volume apesar do horário – já passava das duas da manhã –, ela se misturou à multidão que dançava freneticamente, com os braços estendidos, e repetia o refrão da música. No palco, armado sob uma enorme tenda branca, o cantor se esmerava nos gritos, acompanhado de moças vestidas sumariamente, que se movimentavam numa coreografia copiada pelo público.

Misturada à multidão, Cátia K., rebolando, dirigiu-se aos poucos à lateral do palco. Sem ser percebida, logo estava diante da potente aparelhagem de som que sustentava o espetáculo, um verdadeiro aparato. Enquanto observava o local, ouviu o grito do cantor: “Tira o pé do chããããão!”, seguido de um entusiasmado urro coletivo. Sua mão coçou nervosamente o cabo da arma, uma Magnum 45 com silenciador, escondida sob o cós da minissaia, à guisa de coldre. Calma, pensou, você é uma profissional. Há trabalho a fazer.

Recuperada a serenidade, continuou a análise do local. Caminhou por trás do palco observando a quantidade de pessoas que circulavam por ali. Poucas, percebeu. É o momento. Retornou à área do som e permaneceu alguns segundos olhando as enormes caixas. Num relance, Cátia K. sacou a arma e disparou contra a base do amplificador. O ruído do disparo, amortecido pelo silenciador da arma, foi tão insignificante quanto a faísca resultante da detonação. Boas as aulas de eletrônica, celebrou.

Uníssono “oh” de decepção foi a reação da plateia, surpresa pelo desaparecimento da música, muitos rapazes e moças ainda com os glúteos para cima, no auge de um movimento da agitada dança. No palco, cantor e dançarinas, atônitos, não sabiam o que fazer. Em volta, técnicos e organizadores corriam, dirigindo-se aos fundos do palco, confusos, em barafunda.

Rapidamente, Cátia K. escondeu seu revólver no cós da roupa, olhou de um lado e de outro e se voltou para a frente do palco, junto à multidão. Logo se perdeu no meio das quinhentas e trinta e nove meninas com camisetes brancas, minissaia jeans, cabelos esticados e tingidos de loiro. Caminhando devagar, fingia estar tão perplexa quanto os outros participantes.

De repente, ouviu-se um chiado eletrônico. Uma voz metálica, parecendo distante, anunciou o uso de som auxiliar, que dava possibilidade de funcionamento do microfone, mas, infelizmente, era impotente para a continuidade do espetáculo, portanto, definitivamente cancelado.

Em meio à decepção generalizada, Cátia K. começou a sair de entre o público, que iniciava um esboço de revolta, com gritos esparsos de “queremos show”. Devagar, ela se foi retirando, olhando ao redor, disfarçadamente, até chegar ao furgão. Lá, vidros fechados, desfazendo-se da incômoda peruca, deu a partida no veículo. Um axé a menos, sorriu, satisfeita.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Pesadelos


Da série Confissões

Normalmente, não sonho. Dizem que se sonha todos os dias, mas nem sempre restam lembranças. Não sei. Acho que sonho pouco. Dos sonhos bonitos, lembro alguns. Há os emocionantes, também. O que não esqueço são os pesadelos. Por que é que a gente tem de lembrar mais o que é ruim?

Com o trânsito, por exemplo, tenho pesadelos constantes. Vejo-me dirigindo, agarrada ao volante, perseguida por outros carros em alta velocidade. Só sei que tenho de pisar fundo e fugir. Parece aquele jogo de videogame que simula uma pista de corrida. Tenho horror àquilo, não jogo nem sob tortura. Acordo assustada e, de vez em quando, tenho a mesma sensação quando estou na rua de verdade.

Outro pesadelo é acordar no meio da noite achando que estou deitada em água. Desperto apalpando o colchão. Comecei a ter esse sonho desde que me mudei para Natal. Talvez porque nunca tenha visto tanta umidade na minha vida. Sou bicho de cerrado, terra seca. O inverno aqui é de chuva por três ou quatro meses. Então, às vezes tenho esse sonho: estou de novo no porão da Polícia Federal, onde fiquei presa por 24 horas, numa cela com uma cama de alvenaria, contígua à parede e pintada com tinta a óleo.

Sem cobertura, colchonete ou manta, era fria como o diabo. Com o chão inundado, o que esfriava ainda mais o ambiente, passei a noite sobre a tal cama de tijolo, acocorada, com medo de pôr os pés no chão por conta dos insetos que infestavam o local. Pois eu acordo com a impressão de que estou naquela celinha alagada. Tenho de tatear ao redor até perceber que estou na minha cama, seca e limpa.

Mas o pior de todos os sonhos é com insetos. Especificamente baratas. Tenho fobia a esse bicho. Aliás, horror a qualquer bicho, mas essa coisa pré-histórica é de arrepiar, de se jogar pela janela. Por conta desse maldito animal, nem consegui ler direito A Metamorfose, do Kafka. Eu começava a leitura e tinha engulhos, foi uma dificuldade. Nos meus pesadelos, vou à cozinha ou a outro cômodo da casa e encontro uma barata imensa. E ela, parada, começa a crescer até ficar do tamanho de um urso. É de acordar gritando.