Estou no Beco da Lama, em Natal. Venho sempre aqui, encontro os amigos, bebo, converso, fico alegre. Bares, barracas, churrasquinho, cerveja, cachaça, papo animado. Música. Gente boa.
Aos poucos, fica-se mais feliz, fala-se mais, a conversa quase aos gritos, rio-me. A noite está boa, promete. Tenho 45 anos, uso um macaquinho de brim, camiseta, sandália rasteira, o cabelo solto, apesar do vento. Gosto de soltá-los, são crespos e longos, chegam até o meio das costas. Estou bonita.
Os homens começam uma conversa engraçada sobre a mulher que foi assassinada na Redinha. Traía o marido. Ele a esfaqueou, foi notícia nos jornais. Eles se riem, dizem que o corno não era manso. Rio-me também.
Estamos bem no meio do beco, na calçada do bar mais freqüentado. Na outra esquina, vejo o menino. Ele se aproxima. Parece uma criança, mas já tem quase 30 anos. Negro, o cabelo quase raspado, magro, bermudas e chinelo. Ele vem para a mesa, já sei. Conhece todo mundo. Não me importo. Estamos em festa. Estou no bar.
Na mesa, todos alegres. O menino também. Está tudo bem, é uma noite gostosa. Ele já chegou bêbado. Eu não estou menos, aqui há tanto tempo. Ele me afronta. Não sei para que, não me incomodo.
O menino insiste na provocação. Ele me irrita. E me ofende. Vou para cima dele, não levo desaforo. Quem tu tá achando que é, infeliz? Pensa que tá falando com quem? Ele responde com risadas, parece aéreo. Ri-se. E me chama de noiada.
Furiosa, afronto-o, quem tu tá chamando de noiada, seu. bosta? Ele continua achando graça, isso me enfurece mais. Saio de onde estou, rodeio a mesa e chego até ele. Que é que tu tá falando? Meto-lhe a mão na cara, ele se esquiva, rindo-se. Os outros da mesa se levantam, tentam me acalmar, põem-se entre mim e o menino. Não quero saber, desvio-me deles, quero alcançá-lo.
Avanço sobre ele. Sem parar de rir, levanta-se, foge, mas não deixa o bar, rodeia a mesa, eu o sigo. Um neguinho desses me chamar de noiada? “Ué, se fosse branquinho, podia?” A frase vem de uma mulher gorda, com cara de turista, na mesa ao lado. Olho-a, por alguns segundos, fixa e duramente. Fuzilo-a. Ela se retrai, desvia o olhar, abaixa a cabeça. Volto-me ao menino.
Aos poucos, fica-se mais feliz, fala-se mais, a conversa quase aos gritos, rio-me. A noite está boa, promete. Tenho 45 anos, uso um macaquinho de brim, camiseta, sandália rasteira, o cabelo solto, apesar do vento. Gosto de soltá-los, são crespos e longos, chegam até o meio das costas. Estou bonita.
Os homens começam uma conversa engraçada sobre a mulher que foi assassinada na Redinha. Traía o marido. Ele a esfaqueou, foi notícia nos jornais. Eles se riem, dizem que o corno não era manso. Rio-me também.
Estamos bem no meio do beco, na calçada do bar mais freqüentado. Na outra esquina, vejo o menino. Ele se aproxima. Parece uma criança, mas já tem quase 30 anos. Negro, o cabelo quase raspado, magro, bermudas e chinelo. Ele vem para a mesa, já sei. Conhece todo mundo. Não me importo. Estamos em festa. Estou no bar.
Na mesa, todos alegres. O menino também. Está tudo bem, é uma noite gostosa. Ele já chegou bêbado. Eu não estou menos, aqui há tanto tempo. Ele me afronta. Não sei para que, não me incomodo.
O menino insiste na provocação. Ele me irrita. E me ofende. Vou para cima dele, não levo desaforo. Quem tu tá achando que é, infeliz? Pensa que tá falando com quem? Ele responde com risadas, parece aéreo. Ri-se. E me chama de noiada.
Furiosa, afronto-o, quem tu tá chamando de noiada, seu. bosta? Ele continua achando graça, isso me enfurece mais. Saio de onde estou, rodeio a mesa e chego até ele. Que é que tu tá falando? Meto-lhe a mão na cara, ele se esquiva, rindo-se. Os outros da mesa se levantam, tentam me acalmar, põem-se entre mim e o menino. Não quero saber, desvio-me deles, quero alcançá-lo.
Avanço sobre ele. Sem parar de rir, levanta-se, foge, mas não deixa o bar, rodeia a mesa, eu o sigo. Um neguinho desses me chamar de noiada? “Ué, se fosse branquinho, podia?” A frase vem de uma mulher gorda, com cara de turista, na mesa ao lado. Olho-a, por alguns segundos, fixa e duramente. Fuzilo-a. Ela se retrai, desvia o olhar, abaixa a cabeça. Volto-me ao menino.
Vem cá, merda. Quero ver, agora. Corro atrás dele, os homens tentam me segurar. Ele entra no bar. Vou atrás. Na porta, há engradados cheios de garrafas vazias. Pego uma. Quero quebrá-la em sua cabeça. Mil braços envolvem meu corpo. Seguram-me de todas as maneiras, querem impedir-me. Deixa eu acabar com esse neguinho, quem é noiada, safado?
Com a garrafa na mão, o braço no ar, seguro por outras mãos, o menino lá dentro, sou puxada, empurrada, uma nuvem de gente em torno de mim, não o alcanço. Levam-me pra fora, aos gritos. Tiram-no do bar, pedem-lhe que se vá. Ele não atende, continua pela calçada, rodeia as mesas, ri-se.
Eu grito, ainda me seguram. Tu te lembra quando chegou aqui? Um neguinho, com fome, sem cueca, a bunda suja de bosta. Com os movimentos que faço para me livrar dos braços que me prendem, meus cabelos, revoltos, entram pelo meu rosto, pela minha boca.
Tiram a garrafa de minhas mãos, estou cansada, mas ainda quero alcançá-lo. Não me soltam. Grito. Tu é um fudido, dormia na rua, o cara comia teu cu, aqui na calçada. Eu que te levei pra casa, te dei banho, te dei comida. Tu vem me chamar de noiada? Vem cá pra ver se tu é homem.
Alguns homens vão até ele. Pegam-no pelo braço, levam-no, dobram a esquina do beco, desaparecem. Soltam-me, ajeito os cabelos, volto à mesa. A garçonete traz mais uma cerveja. Sento-me, olho em volta. Ninguém se abala, tudo como dantes. Em suas mesas, freqüentadores bebem, conversam, a música toca. Rio-me. A turista foi embora.
_____________________________________________________
Tentativa de narrar fato no passado com verbo no presente. A formalidade da narrativa, langue, é interrompida apenas pelas intervenções diretas da narradora, parole.
Dizem que, quando o diretor explica a peça ao público, um dos dois é burro. Serei eu, mestre?
Ah, à Hitchkock, faço uma ponta.
Ah, à Hitchkock, faço uma ponta.