São Sebastião, crivado, nublai minha visão(“Derradeira Estação”, de Chico Buarque)
Na sexta-feira, fui lá. Estava já um pouco tonta de cerveja, quando ofereci carona a Elisa, empregada doméstica da amiga em cuja casa eu estava. Ela, sob protestos da patroa, que a chama abusada por se dar a liberdades com visitas, sempre me convidava para o forró a que costuma ir, em São Sebastião, cidade satélite do Distrito Federal, uma das mais distantes do Plano Piloto. Alguns chamam de favela.
Eu nunca havia ido a São Sebastião, só ouvia falar. Moradora recente da capital do país, recebia advertências sobre cidades satélites e seus habitantes. Algumas davam conta de que, ao pôr o pé num desses lugares, um incauto morre assassinado. Ou de susto.
Na sexta, fui. Levar Elisa. O forró, uma varanda de bar transformada em galpão, o lugar apinhado. Elisa e eu bebendo cerveja. Alguns caras me convidavam para dançar, não sei dançar, recusava. A certa altura, deixei Elisa encostada ao balcão, saí para fumar. Um homem alto, simpático, de longe, sorriu pra mim, chamou-me ao baile. Achei-o bonito. Quarenta anos, forte, moreno, cabelos crespos, curtos, agrisalhando-se. Barba por fazer, sorriso doce, meio infantil. Dançamos, fomos para o meio do salão. Aos poucos, encostando cada vez mais os corpos, apertávamo-nos.
Daí para começarmos a nos esfregar não demorou. Eu sentia o cara duro contra minha pele; já alta de cerveja, achava graça, esfregava-me mais, ria. Beijávamo-nos desbragadamente, lambuzadamente, em plena pista. Suas mãos já me acariciavam os seios, não muito discretamente, quando ele me convidou para ir a sua casa. Disse que depois me deixaria no ponto de ônibus. Não sabia que eu estava de carro. Quando saímos, estranhou o veículo, perguntou de onde eu era, quem era. Eu disse. Comprei cerveja em lata, levamos.
A casa – um quarto, nos fundos de um cortiço – teve a porta aberta de um tranco. O chão, sem piso, recebia dois colchões. Um pequeno, curto e fino, de no máximo dez centímetros de espessura, tinha um cobertor dobrado e um travesseiro sujo por sobre. O outro, maior, de casal, mas tão delgado quanto o primeiro, abrigava algumas roupas velhas, uns trapos que não consegui identificar.
Ele se sentou sobre algo que não era mesa nem banco, uma tábua colocada em cima de uns tijolos, ao lado de uma pia com algumas panelas velhas, vazias e sujas. Abriu uma lata de cerveja, chamou-me para seu lado. Vem cá, minha branquinha. Sentei-me, agarrou-me. Retraí-me. Comecei a sentir cheiros, ter nojo. Assustei-me. Ele não se deu conta, continuava a me bolinar, beijava-me o pescoço, apertava-me os seios, enfiava a mão entre minhas coxas.
Não conseguia me imaginar sobre aquele colchão, aquilo começou a me dar engulhos. Irritava-me comigo mesma, pequeno-burguesa, idiota, tem medo de miséria, você, que adora fazer discurso de classe? Teoriza agora sobre a vida da pobreza, imbecil, teoriza. Nojenta. Hipócrita.
Iniciei um jogo de esquiva, negando o corpo, desviando-me das mãos. Ele não gostou, agarrou-me o cabelo, segurando firme minha cabeça, arqueada para trás. Esfregou a barba no meu pescoço e perguntou se eu ia “sair fora”. Débil, pedi que parasse. Ele puxou mais meu cabelo, falou que eu estava “tirando” com ele, uma babaquinha do plano piloto não vai me deixar na mão, vocês, do lado de lá, pensam que nós somos inferiores, eu não sou, sei o que quero, você pensou que ia ter uma coisa e encontrou outra, pensou que ia ter o quê, princesinha, loirinha gostosa, com esse coxão, vocês, dos ministérios, têm uma vida de maconha, de cocaína, de sacanagem, pensam que eu não sei, dão uma de bons, mas vivem na farra, você sabe o que vai levar agora.
Com uma das mãos ocupada em me segurar pelos cabelos, usava a outra para me esfregar os peitos, as coxas, a vagina. Apertava-me inteira. E continuava a falar, beijando-me, lambendo-me o pescoço, a boca, o queixo. Levantou-se de um golpe, carregando-me junto, caímos no colchão maior, sobre as roupas. Ele rapidamente se encostou todo em mim, senti que estava duro e era enorme. Assustei-me com o tamanho daquele pênis, choraminguei. Não me deu tempo sequer para que me ajeitasse sobre os trapos, virou-me de lado, agarrou-me com toda a força e pôs todo seu peso sobre mim, não imaginei que fosse tão forte. Impossível desvencilhar-me. Meu vestido, que já era solto, curto, fácil de tirar, foi praticamente arrancado. Assim, de lado, ele me dobrou as pernas, agarrou-me mais forte, amassando meus seios, machucando os mamilos.
Entrou em mim de uma vez, não no ânus, na vagina, mesmo, mas por trás, com a força que deus lhe deu. Eu não estava lubrificada, aquele pau enorme meteu-se dentro de mim, rasgando-me, queimando. Gritei como nunca havia gritado em toda a minha vida. Ele me tapou a boca com a mão, falava fica quieta, vagabunda escandalosa; mordia minha nuca, minhas orelhas, minhas costas, e dava estocadas, mais, mais, mais. Com uma dor jamais sentida, eu gemia e rebolava os quadris contra aquele cacete imenso me comendo as entranhas.
Quando gozou, era um animal, parecia sem controle, sem razão, amassava-me tanto, debatia-se loucamente, pesava tanto sobre meu corpo, com os braços em torno do meu pescoço, apertando-o, que pensei fosse me estrangular, eu sufocava. Imaginei as manchetes no dia seguinte, professora universitária assassinada na cidade satélite.
Ele ainda me fodeu mais três vezes; eu com dor, com nojo, com medo, gozei em todas elas.
Não volto mais a São Sebastião. Vou-me embora daqui.