Capítulo I
A diversão
Menina, brincando na varanda de casa, dei pra seguir com os olhos algumas formigas jardineiras. Resolvi espalhá-las, soprei-as, bati com as mãos sobre o chão, fiz barulho, a fila de carregadeiras se desfez. Sobraram duas. Observei-as, rodopiando pelo ladrilho, ainda perdidas, e pus o dedinho sobre uma delas. Matei-a. Ainda fiquei algum tempo a olhar a outra que, aparentemente, retomava o caminho da fila. Ela se deteve diante da morta, começou a carregá-la. Interceptei seu caminho com o dedo. Ela se desviou. Fiz isso várias vezes, ela sempre se desvencilhava, sem largar a carga. Divertia-me. Ela se agitava. Pus lascas de madeira, de grama, de palha, qualquer coisa que encontrasse era boa para lhe dificultar o caminho. Numa agitação muito grande, totalmente sem rumo, ia e retornava, dava voltas no mesmo lugar. Alegrava-me ver-lhe o esforço para fugir e, ao mesmo tempo, suportar o peso. Transtornada e sem direção, finalmente ela largou o corpo.
Capítulo II
O desespero
Foi quando me assustei. Na cabeça da pequena malvada, aquela formiga estava carregando a companheira para lhe dar um féretro, um enterro. Eu ainda não havia estudado a vida dos insetos na escola, para saber que o cadáver provavelmente viraria comida no formigueiro. Imaginava então que havia levado a carregadeira a uma aflição tão grande que a fizera desistir de sua nobre missão: render as últimas homenagens à irmã morta. Sentia que era uma coisa horrível, vieram os remorsos. Não pela morte de uma, mas pela loucura da outra. Tragédia das tragédias, cega de dor e medo, renega carne de sua carne? Peguei a defunta com cuidado – foi difícil, ainda que pequenos meus dedos, ela era minúscula – e a coloquei no caminho da sobrevivente. Ela se desviou da outra, continuava sua desvairada corrida, queria salvar-se, abandonava a amiga à própria morte. Desatino, absurdo total, inconcebível. Aquiles, tomado de loucura, largava o corpo de Pátroclo no campo de batalha. Desespero. Diversas vezes, repeti o gesto. Ela não reconhecia a morta, desvia-se-lhe. Impossível. De novo, o corpinho inerte era jogado diante da semelhante. Nada. Ela, louca, insensível, corria. Só corria, não importava sequer o caminho. Eu lhe implorei que recapturasse a morta. Leve-a, eu chorava, leve-a, seu lugar é o formigueiro, não a abandone, não abandone, pegue-a de novo, por favor. É sua irmã.
Capítulo III
O sofrimento
Não agüentei vê-la louca, desatinada, abandonando a companheira. Num gesto final, o cruel dedinho cometeu mais um crime. Matei-a também. Estava acabado. Pelo menos aquela loucura, aquele desatino, terminara. Respirei aliviada enquanto olhava os dois cadáveres no piso da varanda. Foi quando me sobreveio um sentimento ainda pior: quanto sofrimento eu infligira àquele ser. Não me sentia culpada, não pensava na minha ação gratuita e má, só conseguia imaginar a intensidade da dor que a formiga sentira. Tão grande e forte que de seu corpo teria saído uma nuvem densa, escura, que aumentava na proporção do pesar. Imaginei que todo ser que sofresse em todo o planeta produzia, subindo de sua cabeça para a atmosfera, essa massa de gases escuros, carregada de tristeza. O mundo logo se transformaria num imenso balão asfixiante. Morreríamos todos, sob um céu turvo, enredados em angústias, amarguras, infortúnios, próprios e alheios.
Capítulo IV
O fim
Naquela noite, envolvida pelos braços de minha mãe, aprendi o significado da palavra desanuviar.